Neoliberalismo 2.0 à moda de Trump: fragmentado, militarizado e mais perigoso do que nunca, alerta especialista

O historiador e professor Quinn Slobodian, especialista na genealogia do neoliberalismo, desafia a narrativa dominante de que o nacional-populismo liderado por figuras como Donald Trump representa uma rutura com o dogma do livre mercado. Para Slobodian, autor de Hayek’s Bastards e O capitalismo da fragmentação, a extrema-direita actual é uma mutação evolutiva do próprio neoliberalismo — mais adaptada ao tempo da fragmentação global, das crises climáticas e da guerra cultural permanente.

“Trump não é um acidente ou uma anomalia. Ele encarna uma estética e um projeto económico que se adequa perfeitamente à tradição neoliberal. É uma nova cepa, mas da mesma linhagem”, afirma Slobodian, numa entrevista ao El Confidencial onde traça paralelos entre o universo trumpista e modelos autoritários como o da Arábia Saudita, onde a acumulação de riqueza serve como fundamento de Estado.

“Trump aprecia a concentração de riqueza, os eventos desportivos de luxo, os projectos imobiliários sumptuosos. E a Arábia Saudita transforma isso numa forma de governo”, observa.

Uma das teses mais provocadoras de Slobodian diz respeito ao ambiente sul-africano que moldou figuras centrais da elite tecnológica e financeira americana contemporânea, como Elon Musk, Peter Thiel e David Sacks. A infância vivida sob o regime do apartheid teria deixado marcas profundas.

“Crescer num regime onde uma minoria branca governa pela força sobre a maioria negra produz uma mentalidade defensiva, díscola, com uma relação muito concreta com o conflito e a autossuficiência”, afirma. Musk, por exemplo, teria absorvido a ideia de que uma nação deve ser capaz de fabricar os seus próprios bens, à imagem do que acontecia na África do Sul sob sanções internacionais.

“Ele saiu do país para evitar o serviço militar, onde teria sido enviado para combater — e matar — negros. Isso molda a forma como se encara o mundo.”

Essa herança, para Slobodian, explica não apenas a estética militarizada de produtos como o Cybertruck, mas também o envolvimento de Thiel com empresas de defesa como a Palantir ou a Anduril. “Tudo isso parece natural quando cresceste numa colónia de brancos em guerra contra uma maioria não branca.”

Fascismo ou outra coisa?
Apesar das semelhanças com regimes autoritários do século XX, Slobodian é cauteloso com o uso do termo “fascismo” para descrever o actual panorama político. Para o académico, conceitos históricos devem ser aplicados quando existe uma continuidade clara com tradições políticas e intelectuais — como no caso dos Fratelli d’Italia, herdeiros directos do Movimento Social Italiano de Mussolini.

“Se usamos o termo apenas como categoria emocional, corremos o risco de obscurecer o que é novo e específico neste momento histórico.”

Em vez disso, Slobodian propõe uma análise centrada nos desafios contemporâneos: as alterações climáticas, o ascenso da China e o domínio das tecnologias digitais. É neste contexto que emerge um novo tipo de autoritarismo liberal, mais flexível e fragmentado, mas igualmente corrosivo para a democracia.

Libertarismo: democracia com cláusulas?
Slobodian explora também as ambiguidades do libertarismo, uma filosofia que, em certos extremos, se torna abertamente antidemocrática. “O libertarismo cobre um espectro vasto. Desde anarcocapitalistas até socialistas libertários”, explica. E cita o caso de Javier Milei, que passou de anarcocapitalista a presidente da Argentina e, logo, a minarquista.

Apesar das incompatibilidades entre liberdade económica e liberdades civis em casos como Hong Kong ou Singapura — campeões do Índice de Liberdade Económica —, Slobodian reconhece que há formas de libertarismo mais compatíveis com a democracia liberal.

“Se tomarmos à letra os seus argumentos, pequenas comunidades libertárias contratualizadas podem até estar mais próximas do ideal democrático do que os Estados-nação.”

A tentação canadiana e a retórica oca
Questionado sobre as fantasias expansionistas da direita trumpista — como a anexação do Canadá —, Slobodian vê mais teatro do que estratégia real. O interesse pelo território vizinho emerge ciclicamente, sobretudo quando se põe em causa a coesão interna do Canadá, como aconteceu durante os referendos pela independência do Quebeque.

Mas, na prática, não há ganhos claros. “Os EUA já obtêm tudo o que precisam do Canadá via comércio. E absorver um eleitorado maioritariamente progressista só beneficiaria os Democratas”, diz. Até ideias menos ambiciosas, como retomar o Canal do Panamá, parecem ter caído no esquecimento.

“É tudo uma performance de virilidade, típica da estética MAGA, sem correspondência na realidade.”

Neoliberalismo fragmentado
Para Slobodian, o que une estas tendências — do darwinismo social à militarização cultural, passando pelo autoritarismo de mercado — é uma lógica de fragmentação. As novas elites tecnolibertárias preferem comunidades privadas com contratos de adesão, como as charter cities ou as redes corporativas ultraexclusivas. E é nesse mundo que o neoliberalismo encontra a sua mais recente — e mais perigosa — forma.

“Se o trumpismo nos parece uma rutura, é porque não estamos a olhar de perto. Ele é o neoliberalismo adaptado aos tempos do colapso.”