Tragédia na Líbia podia ter sido evitada: avisos de que as barragens de Derna poderiam romper foram ignorados durante anos
Os avisos eram claros mas foram ignorados durante anos. Há muito que os especialistas alertavam que as inundações representavam um perigo significativo para as duas barragens destinadas a proteger cerca de 90 mil pessoas no nordeste da Líbia: foram sucessivos os pedidos de manutenção imediata das duas estruturas, localizadas logo acima da cidade costeira de Derna. No entanto, os sucessivos Governos do país nunca reagiram, garantiu a ‘Associated Press’.
“No caso de uma grande inundação, as consequências serão desastrosas para os residentes do vale e da cidade”, escreveu Abdelwanees Ashoor, professor de engenharia civil, num estudo publicado no ano passado no ‘Sabha University Journal of Pure and Applied Science’.
Às primeiras horas do passado dia 11, os moradores de Derna acordaram com fortes explosões antes de as águas invadirem a cidade mediterrânea – as duas barragens romperam, criando uma parede de água com dois andares de altura que varreu bairros inteiros para o mar. O dilúvio revelou-se fatal para milhares de pessoas em apenas alguns segundos.
O número de mortos tem sido variado, com diferentes funcionários governamentais e agências humanitárias a fornecerem números diferentes. O Crescente Vermelho da Líbia disse que pelo menos 11.300 pessoas foram mortas e outras 10.000 estão desaparecidas. Já o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários citou números muito mais baixos, com cerca de 4 mil pessoas mortas e 9 mil desaparecidas. De acordo com o ministro da Saúde do Leste da Líbia, Othman Abduljaleel, há pelo menos 3.283 corpos que foram enterrados até a noite do passado domingo, sem no entanto precisar quantos corpos foram recuperados no total.
A negligência e a corrupção são abundantes na Líbia, um país com cerca de 7 milhões de habitantes que dispõe de uma riqueza de reservas comprovadas de petróleo e gás natural. Em 2022, o país ocupava a 171ª posição entre 180 no índice de transparência compilado pela Transparência Internacional.
As barragens Abu Mansour e Derna foram construídas por uma construtora jugoslava na década de 1970 – Abu Mansour, a 14 quilómetros da cidade, tinha 74 metros de altura e podia conter até 22,5 milhões de metros cúbicos de água. Já a barragem de Derna, também conhecida como Belad, fica muito mais perto da cidade e tem capacidade para 1,5 milhões de metros cúbicos de água.
“Ambas as barragens não recebiam manutenção há muitos anos, apesar das repetidas inundações que atingiram a cidade no passado”, garantiu Saleh Emhanna, investigador geológico da Universidade de Ajdabia, na Líbia. As barragens sofreram grandes danos numa forte tempestade que atingiu a região em 1986: mais de uma década depois, um estudo encomendado pelo Governo líbio revelou fissuras nas suas estruturas, salientou o procurador-geral da Líbia, al-Sediq al-Sour. O responsável garantiu, na passada sexta-feira, que iria ser investigado o colapso das duas barragens.
De acordo com uma agência de auditoria estatal em 2021, as duas barragens não tiveram manutenção, apesar da alocação de mais de 2 milhões de dólares para esse fim, em 2012 e 2013. Não foi feito qualquer trabalho na área. Uma empresa turca foi contratada em 2007 para realizar a manutenção das duas barragens e construir outra barragem entre elas. No seu site, a Arsel Construction Company Ltd. afirmou que concluiu as suas obras em novembro de 2012. No entanto, fotos recentes de satélite mostram que não foi construída qualquer nova barragem.