Tortura, propaganda e chantagem: prisioneiros ucranianos relatam ofertas russas para “invadir a Europa juntos”
A Ucrânia propôs recentemente à Rússia uma nova troca de prisioneiros de guerra, num formato simbólico de mil por mil, uma operação que reacende alguma esperança entre as dezenas de milhares de famílias ucranianas que, há mais de três anos, aguardam notícias de entes capturados pelas forças russas. No entanto, relatos dos que regressam da prisão revelam uma realidade sombria de tortura sistemática, abusos e tentativas de aliciamento para que mudem de lado e integrem as forças russas com promessas de “ocupar a Europa”.
O major Volodymyr Labuzov, oficial médico da 36.ª Brigada de Fuzileiros da Ucrânia, foi um dos soldados capturados em Mariupol, em abril de 2022, durante a resistência à invasão russa. Depois de semanas de cerco, ele e vários companheiros foram feitos prisioneiros. Labuzov sobreviveu à prisão e regressou à liberdade, e relata agora à Euronews os horrores vividos.
“Durante um dos interrogatórios, os torturadores ofereceram-me cooperação. Disseram que o objetivo deles era ‘juntares-te a nós e invadirmos juntos a Europa’”, relatou o oficial ucraniano. “Quase todos os prisioneiros recebem esta proposta. Dizem-nos: ‘vem connosco, vamos libertar a Ucrânia e depois conquistar a Europa’”.
Famílias à espera de um nome ou sinal de vida
No último dia 6 de maio, durante uma troca de prisioneiros, centenas de familiares ucranianos reuniram-se no local da operação com fotografias de soldados desaparecidos. Muitas das imagens traziam nomes, brigadas e, quando possível, datas de desaparecimento.
Num dos momentos mais marcantes, uma mãe empunhava uma bandeira com a imagem do filho, desaparecido em combate. Um dos soldados libertados reconheceu-o: estivera com ele na mesma cela e assegurou à mulher que o filho estava vivo e “a resistir bem”.
Segundo dados recolhidos por organizações de direitos humanos, nove em cada dez prisioneiros de guerra ucranianos são sujeitos a tortura física e psicológica em cativeiro russo, incluindo violência sexual, execuções sumárias e sentenças ilegais.
Civis também na lista de prisioneiros
Volodymyr Labuzov denunciou ainda a detenção de milhares de civis ucranianos, incluindo crianças, mantidos pelas forças russas em condições semelhantes às dos militares. “São pessoas que nada têm a ver com as Forças Armadas da Ucrânia. Devem ser libertadas sem condições nem negociações”, afirmou.
O oficial sublinhou que a Rússia não faz distinção entre soldados e civis: “Muitos destes civis foram retirados das regiões que Moscovo diz ter libertado e às quais teria trazido felicidade e liberdade. Mas o tratamento que recebem é igual ao dos militares – prisão, abuso, ausência de direitos.”
O número de civis ucranianos atualmente detidos em prisões russas é desconhecido, tal como o total dos que permanecem sob ocupação em condições semelhantes.
Cidadania russa imposta sob ameaça
Nas zonas sob ocupação russa, os residentes enfrentam uma escolha impossível, segundo Labuzov: “Se quiseres simplesmente viver, ou até andar pelas ruas da tua aldeia, tens de aceitar a cidadania russa. Sem ela, não és ninguém, não tens direitos.”
“O que é isto, senão genocídio da nação ucraniana? Como podemos descrever de outra forma as condições impostas à população nas áreas temporariamente ocupadas?”, questionou, apontando o dedo à política de Moscovo.
Segundo o militar, quem recusa a cidadania russa ou ousa resistir, “simplesmente vê a sua localidade varrida do mapa”. Foi o que aconteceu, afirma, em Mariupol – cidade onde testemunhou a destruição sistemática de civis e infraestruturas. “Vi a destruição da cidade. Vi a destruição de civis. Vi a destruição da vida urbana”, disse.
A mesma lógica de devastação, assegura, foi aplicada em Avdiivka, Bakhmut e Soledar: “Não sobrou nada. Só ruínas.”
Desumanização e propaganda nas prisões
Além da violência física, os prisioneiros ucranianos são alvo de uma campanha contínua de desmoralização. “Repetem-nos constantemente que a Ucrânia já não existe, que o país nos esqueceu”, explicou Labuzov.
Este tipo de tratamento, aliado às propostas para se juntarem às forças russas, revela uma estratégia de Moscovo para manipular prisioneiros através da exaustão física e psicológica.
Labuzov termina o seu testemunho com um apelo direto à sociedade europeia: “Espero que a Europa se interesse mais pelo que está a acontecer na Ucrânia e pelos horrores que os ucranianos enfrentam no cativeiro russo.”
A troca de prisioneiros agora proposta – mil por mil – representa apenas uma fração da realidade. Um gesto humanitário, mas insuficiente, face à escala da crise e à violação sistemática do direito internacional humanitário.
Ao mesmo tempo, as famílias continuam a aparecer nas trocas com fotografias nas mãos e esperança no olhar, aguardando o regresso dos seus – ou, pelo menos, notícias.