Terapia genética revolucionária devolve visão a crianças cegas de nascença

Quatro crianças que nasceram com uma forma grave de cegueira devido a uma rara deficiência genética recuperaram parcialmente a visão graças a uma terapia genética inovadora. O tratamento foi desenvolvido por cientistas do UCL Institute of Ophthalmology e administrado no Moorfields Eye Hospital, no Reino Unido, com o apoio da empresa de biotecnologia MeiraGTx.

Os avanços foram publicados a 22 de fevereiro na prestigiada revista científica The Lancet e demonstram o potencial da terapia genética para tratar condições raras e severas de cegueira infantil. Os especialistas esperam que, no futuro, esta abordagem possa ser expandida para outras formas de doenças oculares hereditárias.

Como funciona a nova terapia genética
As crianças tratadas sofrem de uma mutação no gene AIPL1, fundamental para a saúde da retina. A condição, uma forma severa de distrofia retiniana, faz com que as células da retina não funcionem corretamente e acabem por morrer, resultando em cegueira desde o nascimento. Os afetados conseguem apenas distinguir entre claro e escuro.

A terapia inovadora consiste na injeção de cópias saudáveis do gene AIPL1 diretamente na retina, através de uma cirurgia minimamente invasiva. Para permitir que os genes substitutos entrem nas células da retina, são transportados por um vírus modificado, inofensivo para o organismo. Este processo visa restaurar a função celular e prolongar a vida útil das células retinianas, prevenindo a progressão da doença.

Resultados iniciais mostram melhorias significativas
Como esta condição genética é extremamente rara, as primeiras crianças tratadas vieram do estrangeiro. Para garantir a segurança da abordagem, cada criança recebeu o tratamento apenas num dos olhos.

Nos três a quatro anos seguintes à intervenção, os quatro pacientes demonstraram melhorias notáveis na visão do olho tratado. No entanto, o olho não tratado continuou a deteriorar-se, confirmando o impacto positivo da terapia. Estes resultados reforçam a hipótese de que um tratamento precoce pode transformar a vida de crianças com esta condição.

A terapia genética para outro tipo de cegueira hereditária, causada pela mutação RPE65, já está disponível no Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS) desde 2020. A esperança dos investigadores é que os avanços agora registados possam abrir caminho para tratamentos semelhantes noutras doenças genéticas da visão.

Impacto transformador e reconhecimento dos especialistas
Os especialistas envolvidos no estudo sublinham o impacto profundo desta descoberta.

O professor James Bainbridge, especialista em retina do UCL Institute of Ophthalmology e cirurgião no Moorfields Eye Hospital, destacou:

“A deficiência visual em crianças pequenas tem um efeito devastador no seu desenvolvimento. Tratar esta condição na infância com esta nova terapia genética pode transformar a vida dos mais gravemente afetados.”

Por sua vez, o professor Michel Michaelides, também do UCL Institute of Ophthalmology, acrescentou:

“Pela primeira vez, temos um tratamento eficaz para a forma mais severa de cegueira infantil. Isto representa uma mudança de paradigma, permitindo tratar a doença nos seus estágios iniciais. Os resultados destas crianças são impressionantes e demonstram o poder da terapia genética para mudar vidas.”

A jornada de uma família: a recuperação de Jace
Entre os beneficiados pela terapia está Jace, uma criança do estado de Connecticut, nos EUA, diagnosticada com uma forma agressiva de amaurose congénita de Leber (Leber Congenital Amaurosis, LCA). Os seus pais aceitaram participar no ensaio clínico para lhe proporcionar uma hipótese de ver pela primeira vez.

A mãe, DJ, recorda a recuperação de Jace logo após a operação:

“Assim que saiu da cirurgia, Jace começou a rodopiar, a dançar e a fazer rir as enfermeiras. Algumas semanas depois, já reagia à televisão e ao telemóvel. Em seis meses, conseguia reconhecer e nomear os seus carros favoritos a vários metros de distância. Mas levou tempo para o cérebro processar o que agora conseguia ver.”

Ela também mencionou uma melhoria inesperada:

“Crianças com perda de visão têm frequentemente dificuldades em dormir. Agora, ele adormece muito mais facilmente, o que tornou as noites muito mais agradáveis.”

O pai de Jace, Brendan, expressou a sua gratidão pela oportunidade:

“Quando nos ofereceram esta hipótese, quisemos dar-lhe tudo o que pudéssemos para que tivesse sucesso na vida. Também compreendemos que esta participação poderia ajudar outras crianças no futuro. A experiência foi incrivelmente positiva e os resultados são simplesmente espetaculares.”

Esperança para o futuro e novas aplicações
A terapia genética foi desenvolvida e fabricada na UCL sob uma licença especial de produção. A MeiraGTx, empresa de biotecnologia envolvida na investigação, assegurou o armazenamento, controlo de qualidade e fornecimento do tratamento.

A administração do tratamento foi realizada no Great Ormond Street Hospital, com as avaliações médicas das crianças a decorrerem no NIHR Moorfields Clinical Research Facility. O NIHR Moorfields Biomedical Research Centre forneceu a infraestrutura necessária para o estudo.

O professor Robin Ali, especialista em terapia genética do UCL Institute of Ophthalmology e do King’s College London Centre for Gene Therapy and Regenerative Medicine, destacou o papel do Reino Unido na investigação médica:

“Este trabalho demonstra a importância das infraestruturas académicas no Reino Unido e da capacidade de produção de terapias avançadas para disponibilizar tratamentos inovadores a pessoas com doenças raras.”

A investigação foi parcialmente financiada pelo National Institute for Health and Care Research (NIHR), pela MeiraGTx e pela Moorfields Eye Charity, organização que apoia financeiramente projetos de inovação médica.

Graças à generosidade de doadores, a Moorfields Eye Charity tem contribuído para expandir este programa de medicina experimental, incluindo o lançamento de novos ensaios clínicos para terapias genéticas.

Os detalhes completos do estudo estão publicados no artigo científico “Gene therapy in children with AIPL1-associated severe retinal dystrophy: an open-label, first-in-human interventional study”, assinado por Michel Michaelides, James Bainbridge e uma equipa de investigadores de instituições britânicas e internacionais. O artigo foi publicado a 22 de fevereiro de 2025 na The Lancet.

Este avanço representa um marco na medicina genética e pode transformar o futuro do tratamento da cegueira hereditária, trazendo esperança a milhares de crianças em todo o mundo.