Regulador de saúde repreende hospitais que tratam mal doentes que recusam transfusões por motivos religiosos
A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) censurou publicamente duas unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde por falhas na resposta a doentes que recusaram transfusões de sangue por convicções religiosas. Os casos envolveram o Hospital Garcia de Orta, em Almada, e o Hospital de Abrantes, ambos criticados por não terem assegurado o devido encaminhamento clínico ou por registos inadequados sobre a religião dos utentes.
No centro das críticas estão decisões médicas que, segundo a ERS, violaram princípios fundamentais como o direito à autodeterminação, à não discriminação e à proteção de dados pessoais, prejudicando o acesso dos doentes a cuidados de saúde adequados e respeitadores da sua liberdade religiosa.
Um dos episódios ocorreu na Unidade Local de Saúde (ULS) Almada-Seixal, que integra o Hospital Garcia de Orta. Um doente diagnosticado com um tumor no rim esquerdo recusou transfusões de sangue, em linha com as crenças das Testemunhas de Jeová. De acordo com o relatório da ERS, citado pelo Público, o médico que o acompanhava terá respondido de forma “rude e prepotente”, afirmando que “se a cirurgia não fosse com sangue”, não o operaria.
O clínico recomendou ao paciente que procurasse outro hospital, alegando, no entanto, que não conhecia “nenhum hospital para recomendar”. Esta posição motivou a queixa do utente, que acusou o médico de não respeitar a sua vontade nem de oferecer alternativas viáveis para o tratamento.
Segundo o regulador, a unidade hospitalar deveria ter formalizado um plano de cuidados onde constasse expressamente a recusa de transfusões de sangue, tal como previsto no Manual do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC). A ERS concluiu que não só não foi apresentada qualquer alternativa terapêutica ao utente, como também o hospital não o referenciou para outro profissional ou unidade com capacidade para respeitar a sua vontade.
Apesar das referidas omissões, verificou-se posteriormente que o Hospital de São João, no Porto, tinha capacidade para realizar a cirurgia nos moldes pretendidos, o que acabou por acontecer.
Perante estes factos, a ERS instaurou um processo de contraordenação contra a ULS Almada-Seixal por não ter garantido o direito do utente ao acesso a cuidados de saúde, considerando a atitude da unidade como uma “rejeição infundada” do paciente.
O regulador instruiu ainda a instituição a respeitar os direitos fundamentais dos utentes, em especial no que toca à proteção de dados e à reserva da vida privada. Nesse sentido, recomendou que se evite o registo da religião professada no processo clínico, qualificando tal informação como “desnecessária, excessiva e desproporcional”.
Caso em Abrantes: médica recusa cirurgia a paciente que rejeitou transfusão
Situação semelhante ocorreu no Hospital de Abrantes, da Unidade Local de Saúde do Médio Tejo, onde uma utente viu o seu procedimento cirúrgico cancelado e acabou retirada da Lista de Inscritos para Cirurgia (LIC), após a anestesiologista ter recusado participar na intervenção ao perceber que a paciente não aceitava transfusões de sangue.
Embora reconheça o direito da médica à objeção de consciência, a ERS considera que a unidade hospitalar tinha a obrigação de acionar mecanismos internos para garantir que os direitos da utente fossem igualmente salvaguardados.
O regulador afirma que o hospital deveria ter verificado se existia outro anestesiologista não objetor nos seus quadros, ou, na sua ausência, proceder ao encaminhamento da utente para outro hospital do SNS. Porém, nenhuma dessas soluções foi considerada, em parte porque na proposta cirúrgica inicial não estava expressa a recusa transfusional.
A utente acabou por ser avaliada por uma unidade privada, onde se concluiu que já não necessitava da cirurgia inicialmente prevista.
Caso adicional: troca de medicação no Hospital Santa Maria
No mesmo relatório trimestral, publicado esta sexta-feira, a ERS também analisa uma queixa contra a Unidade Local de Saúde Santa Maria, relacionada com uma troca de medicação indevida. A utente, que não sofria de anemia, foi medicada para essa condição devido a uma troca de amostras no serviço de urgência, provocada, segundo a unidade, por “uma noite de grande pressão” devido ao elevado volume de doentes.
A instituição reconheceu a possibilidade de uma troca de tubos no momento da integração no sistema informático e classificou a situação como “absolutamente excecional”. Em resposta, informou ter revisto todos os procedimentos do dia em causa e reforçado as medidas de segurança.
A ERS destacou que os hospitais visados falharam na garantia de um princípio basilar do sistema de saúde: o respeito pelos direitos, escolhas e dignidade dos utentes. Tanto no caso de Almada como no de Abrantes, a falta de diligência em encontrar soluções que respeitassem a vontade dos doentes teve impacto direto na prestação de cuidados.
A entidade reguladora reforça que todos os prestadores de saúde devem garantir que o tratamento de dados pessoais é feito com respeito pela legalidade, necessidade e proporcionalidade, e que qualquer convicção religiosa só deve constar do processo clínico quando estritamente relevante para a prestação de cuidados e com o devido consentimento informado.