Reconciliar accionistas e stakeholders
Após muitos líderes empresariais terem dedicado décadas à maximização a curto prazo dos retornos dos accionistas, a Declaração do Propósito de uma Empresa de Agosto de 2019 da Business Roundtable a declarar que as empresas devem servir os interesses de todos os stakeholders assinalou uma grande mudança. Esta alteração representa um desafio, e não apenas para os quase 200 CEO de grandes empresas que assinaram a declaração da Roundtable.
Como é que os líderes devem gerir o compromisso entre os diferentes interesses dos stakeholders? Vejamos a tensão entre os interesses dos accionistas a curto prazo e a necessidade de apoiar uma resposta social mais sólida perante a pandemia ou outras crises. Os que procuraram estratégias de crescimento a longo prazo que beneficiam um vasto conjunto de envolvidos compreendem que se devem concentrar no valor a longo prazo da empresa. Especificamente, é importante avaliar quais os stakeholders que criam valor a longo prazo para os accionistas. Isto permite que as empresas evitem armadilhas que destroem valor e que desenvolvam acordos que criam valor.
Analisámos as cinco armadilhas e descrevemos como os líderes as podem evitar. Em particular, sublinhamos a experiência da Royal DSM, empresas biotecnológica neerlandesa de sustentabilidade com uma capitalização de mercado de cerca de 19 mil milhões de euros, que mostra como a abordagem que propomos pode desenrolar-se ao longo de várias iterações.
CINCO ARMADILHAS A CURTO PRAZO
Vejamos as seguintes perguntas:
- Quem são os stakeholders mais importantes e que criam mais valor?
- Quais os stakeholders que obtêm os melhores acordos para a empresa?
- Quais os que obtêm os piores acordos?
- Quais os mais perigosos?
- Quais os intermediários mais ameaçadores entre os stakeholders e a empresa?
Se não conseguem responder a nenhuma, a vossa empresa arrisca-se a cair numa destas armadilhas.
1) Calcular mal o potencial valor dos stakeholders. Os stakeholders com mais probabilidade de criar valor a longo prazo para os accionistas são os que têm mais impacto na liquidez futura e a longo prazo da empresa. Embora alguns criem mais liquidez a curto prazo, outros obtêm valor a longo prazo através das competências e conhecimentos que possuem, por exemplo, ou através da sua capacidade de ter acesso a recursos ambientais.
Os stakeholders que provavelmente criam mais liquidez devem estar na linha da frente da distribuição dos rendimentos, mas não são necessariamente accionistas. Ainda assim, muitas empresas têm tratado os accionistas como os stakeholders mais essenciais. Diversas empresas S&P 500 gastaram perto de 100% dos seus lucros operacionais em dividendos e aquisição de acções.
Isto pode fazer sentido a curto prazo, porque os accionistas podem baixar o preço das acções e as compensações dos executivos se não gostarem da política de distribuição. Contudo, para além dos activistas, os accionistas de empresas estabelecidas têm pouco impacto na liquidez futura que determina o valor a longo prazo.
As administrações e as equipas de executivos muitas vezes não conhecem os stakeholders com mais probabilidade de estimular liquidez futura. Identificar possíveis criadores de valor complica-se graças a microfactores, como as revoluções tecnológicas que dão origem a criadores de valor novos e pouco familiares. Os executivos encurralam as suas empresas, por vezes fatalmente, quando não identificam e dão prioridade aos stakeholders que criam valor.
Vejamos: as rápidas mudanças na distribuição de conteúdos visuais exemplificam como os líderes do sector podem avaliar mal os stakeholders de amanhã. Quando a Netflix entrou nos vídeos, nem a administração da Blockbuster nem o investidor Carl Icahn reconheceram que os consumidores online tornar-se-iam grandes criadores de valor; a Blockbuster manteve o seu enfoque na distribuição, para muito do seu detrimento. E quando a Apple TV+, a Amazon Prime, a HBO e a Disney entraram no streaming de conteúdos, a Netflix não as viu como concorrência séria, mas desde então adaptou-se rapidamente.
2) Subestimar as reacções negativas dos stakeholders mais fracos. Hoje é arriscado depender de modelos de negócio que obtêm valor de stakeholders fracos ou discretos para oferecer compensações imediatas aos accionistas. A resultante falta de flexibilidade financeira pode transformar-se numa ameaça existencial quando a liquidez acaba durante uma crise económica ou social. Basta pensar no crescente papel das redes sociais na criação ou destruição da reputação de uma empresa ou as ONG que estão prontas a sublinhar a luta dos stakeholders mais explorados. Não subestimem o risco de possíveis reacções adversas. Os danos na reputação, já para não falar em processos legais e multas, podem derrubar uma empresa. Quando a Boeing acelerou o desenvolvimento do 737 Max, aparentemente subestimou o risco de colocar a segurança em risco e ignorou o custo de uma possível reacção adversa.
Na tecnologia, é sabido que o aproveitamento financeiro dos dados dos utilizadores pela Amazon, Facebook, Google, Twitter e outras empresas levou a grandes retornos financeiros, aumentados por uma suavidade fiscal. Contudo, a reacção adversa está a aumentar, com pedidos de protecção de privacidade e compensação pela utilização de dados pessoais. Na Europa, diversos estados estão a acabar com subterfúgios fiscais internacionais em resposta a queixas de que as gigantes norte-americanas não pagam o que é devido e de que os cidadãos são os mais penalizados.
3) Subsidiar parasitas à custa dos accionistas a longo prazo. Administrações e executivos dedicam por vezes recursos a uma parte do negócio que consome recursos. Por exemplo, um parasita pode ser uma divisão mais fraca que está ligada às raízes do fundador ou uma unidade de negócio cujas perdas não são assinaladas e são incluídas na rentabilidade de uma grande divisão. Se a empresa continua a dedicar recursos a um parasita, perde a oportunidade de dedicar esses recursos a uma criação de valor a longo prazo.
O financiamento de divisões zombies tem sido habitual em conglomerados. Por exemplo, na divisão de projectos da agora defunta Carillion, um conglomerado de infra-estruturas que entretanto declarou falência, as receitas eram reconhecidas rapidamente e os grandes custos só eram registados bastante mais tarde.
4) Fazer cedências a predadores. Os predadores dedicam-se à destruição intencional de valor para benefício próprio e às custas de outros stakeholders. Fingem que promovem a criação de valor. Um exemplo é do dos investidores abutres, que afirmam estar do lado dos investidores e depois destroem a empresa.
Quando a empresa de investimento BC Partners comprou a retalhista britânica Phones 4U em 2011, financiou a compra com 220 milhões de euros em dinheiro e um empréstimo obrigacionista de 225 milhões de euros e depois recebeu um dividendo de 245 milhões de euros. A Phones 4U desmoronou-se em 2014, fechando 362 lojas e despedindo mais de 1500 funcionários, destruindo o valor das obrigações.
5) Subestimar o papel dos intermediários. Os intermediários que se encontram entre a empresa e os seus stakeholders têm os seus próprios objectivos, muitas vezes diferentes dos da empresa. As empresas correm riscos se subestimarem a forma como os intermediários conseguem aumentar o poder de outros stakeholders.
A relação com os intermediários pode ser tensa. Os bancos de investimento, por exemplo, não só levam as IPO ao mercado, como também aconselham os seus clientes empresariais no processo. Este conselho pode ser tendencioso pelas taxas que os bancos ganham com a IPO, como pode acontecer durante IPO que fracassam.
Contudo, os intermediário também podem fazer com que as empresas transformem vítimas em criadores de valor. Depois de ONG como a Médicos Sem Fronteiras e a Oxfam as começarem a criticar, 39 farmacêuticas desistiram do processo legal que impedia o governo sul-africano de permitir que empresas locais produzissem medicamentos genéricos contra a sida. A publicidade negativa fez com que as farmacêuticas tivessem dificuldade em continuar com os processos. Mas também levou as empresas a servirem os interesses a longo prazo de outros stakeholders, como os pacientes e a sociedade em geral – e isto provavelmente beneficiou os interesses financeiros.
ALINHAR OS STAKEHOLDERS COM O VALOR DOS ACCIONISTAS A LONGO PRAZO
Os líderes devem determinar quais os stakeholders que são vítimas, sujeitos à extracção de valor que beneficia os accionistas, com risco incerto de uma reacção adversa do stakeholder; quais os que são parasitas, inclinados a extrair mais valor do que aquele que contribuem; quais são predadores, que destroem valor da empresa para benefício próprio e em detrimento do benefício dos outros; e quais os criadores de valor, que promovem iniciativas para si e para a empresa, em que todos saem a ganhar.
As empresas devem tentar passar todos os stakeholders para a categoria em que todos sabem a ganhar – assinalando não só os que já são criadores de valor fundamentais, mas também as vítimas e os parasitas. No mínimo, devem impedir que estes stakholders prejudiquem o valor da empresa. Com base neste trabalho de classificação, os líderes podem depois adoptar as cinco estratégias para evitarem as armadilhas.
A DSM passou por duas grandes transformações ao longo dos anos: de uma empresa de minagem de carvão para uma empresa de químicos de base e mais tarde dos químicos de base para produtos biotecnológicos. Actualmente, é líder na área de nutrição, saúde e sustentabilidade. Desde a sua entrada na bolsa de Amesterdão (AEX) em 1989, a DSM ultrapassou repetidamente o índice da AEX e registou um crescimento anual composto (incluindo dividendos) de 13%, em comparação com os 8% do mesmo período do índice AEX.
Eis as cinco estratégias:
1) Destruição de valor pelos predadores. Os predadores como parceiros disruptivos, activistas a curto prazo, stakeholders corruptos ou executivos mercenários podem surgir periodicamente. Representam o risco mais urgente e com os quais se deve lidar imediatamente. Para além de fortalecerem os sistemas de gestão de risco de uma empresa, os líderes devem estar atentos a actividades invulgares. Identificar e neutralizar predadores antes que estes enfraqueçam a empresa.
A DSM tem sido eficaz a antecipar e neutralizar possíveis predadores. Antes de investidores activistas poderem atacar durante a sua transformação dos químicos para a biotecnologia, a DSM colocou capital numa fundação especial com o objectivo de usar o dinheiro apenas e só no apoio a uma visão estratégica da empresa. Mais tarde, quando a investidora activista Third Point pediu que a empresa fosse dividida em dois para criar valor imediato aos accionistas, Feike Sijbesma, na altura CEO, ignorou o pedido. Em vez disso, implementou uma nova estratégia de contenção de despesa, alienou a quota da DSM numa unidade de plásticos e resinas que não fazia parte da nova estratégia, e investiu o lucro no desenvolvimento do novo negócio da biotecnologia. Estas jogadas impediram a influência de um predador.
2) Parar de financiar parasitas para evitar a erosão do valor aos accionistas a longo prazo. O financiamento de parasitas pode persistir como resultado de inércia estratégica. Contudo, as empresas acabam por pagar a fatura a longo prazo, quando transferem valor para parceiros que não podem ou não querem ser recíprocos, como unidades de negócio pouco rentáveis, executivos com remunerações demasiado altas, filantropos desalinhados com os accionistas a longo prazo ou devedores com pagamentos em atraso.
Os stakeholders que criavam valor podem transformar-se em parasitas quando as circunstâncias mudam. Durante a sua era como empresa de químicos, a DSM perdeu dinheiro quando o mercado dos químicos esmoreceu. Os executivos, colaboradores e stakeholders estatais associados a essa unidade do negócio passaram de criadores de valor a parasitas. Em resposta, a gestão da DSM recomendou que o estado neerlandês colocasse as acções da empresa no mercado. Depois, a DSM vendeu as suas operações nos químicos a transformou a sua unidade de produção principal num parque industrial que alberga 113 empresas. A venda deu à DSM o capital necessário para criar valor a longo prazo numa nova área: a biotecnologia.
3) Desenvolver acordos com criadores de valor. Os líderes devem mobilizar os criadores de valor através de iniciativas benéficas para todos, de forma a maximizar o valor da empresa a longo prazo. Os criadores de valor podem ser funcionários, empreendedores, clientes, parceiros, investidores, agências governamentais . As parcerias construtivas com esses stakeholders exigem acordos baseados na confiança.
Desenvolver uma cultura que apoia estas relações exige uma gestão de mudança empenhada e eficaz, que envolve aumentar as recompensas dos stakeholders ao ponto em que não é criado valor adicional a longo prazo para a empresa. Se as iniciativas estiverem relacionadas com lucros ou dividendos mais baixos a curto prazo, a gestão deve explicar aos accionistas e a outros stakeholders como estes esforços encaixam numa estratégia a longo prazo.
O primeiro acordo da DSM foi com o estado neerlandês, que permitiu à empresa explorar depósitos de carvão e (mais tarde) jazidas de gás desde que não explorasse colaboradores ou comunidades locais no processo. Depois, quando a DSM se tornou uma empresa biotecnológica, os seus novos criadores de valor foram os gestores que lideraram a transformação do seu portefólio empresarial para produtos médicos. Os líderes da DSM dialogaram com estes stakeholders e assinaram um contracto de valor estratégico baseado em indicadores de desempenho mutuamente acordados.
A Chobani, empresa norte-americana de iogurtes, tem acordos com os seus colaboradores, consumidores e comunidades onde opera para estimular um crescimento amigo do ambiente. E instalou um sistema de osmose inversa na sua fábrica de Idaho para recuperar e reciclar água usada durante a produção e diminuir o consumo de energia em 17% nas suas fábricas de 2014 a 2019.
4) Minimizar a extracção de valor das vítimas. Pode haver a tentação de aumentar a liquidez a curto prazo à custa de vítimas. Contudo, os líderes devem lembrar-se dos riscos na reputação, legais e operacionais de o fazer. Retirar valor das vítimas com pouco poder comercial, como funcionários sem protecção, pode facilmente prejudicar os valores da empresa e a sua vantagem competitiva. Outra consideração: a ameaça ao valor de mercado da empresa, tendo em conta que os gestores de bens usam cada vez mais indicadores ambientais, sociais e empresariais como métricas de gestão de risco. A forma ideal de mitigar esses riscos é converter vítimas em criadores de valor, como fez a Nespresso com os seus produtores de café ao dar formação em agronomia e conselhos.
Quando a DSM fechou as minas de carvão nos anos 60 e 70, requalificou alguns dos seus 25 mil mineiros para se empregarem nas divisões de químicos, encontrou emprego para outros na empresa de automóveis e camisões DAF e criou dois workshops de vestuário para empregar as famílias dos mineiros. Recentemente, a DSM mudou o ambiente de uma possível vítima para um enfoque na criação de valor sustentável. A empresa remunera os seus cerca de 300 executivos com compensações a curto e longo prazo.
A DSM também fornece ajuda social ligada à sua estratégia biotecnológica. Desde 2007, juntou-se ao World Food Programme para distribuir as suas vitaminas, combinações de nutrientes e alimentos fortificados a pessoas subnutridas. Segundo Fook Wientjed, director de sustentabilidade da DSM quando a ajuda começou: «Isto torna a DSM uma empregadora atractiva e ajuda-nos a compreender as necessidades de diferentes países.»
5) Usar os intermediários como promotores. Este lema aplica-se a factores de influência externos, como lobistas, ONG, reguladores, analistas, comentadores, consultores, banqueiros e auditores.
Nos últimos anos, a “política empresarial internacional” da Microsoft apresentou directrizes para interagir com governos e reguladores de todo o mundo. Estas incluem a proposta de um tratado internacional para proteger os cidadãos de ciberataques estatais e o pedido de apoio a 17 países e oito empresas tecnológicas para eliminar conteúdos online extremistas e violentos.
É também importante excluir os intermediários quando estes encorajam os stakeholders a seguirem uma visão a curto prazo. Ao longo dos anos, a DSM fez isto de várias formas. Rejeitou a proposta de uma consultoria para maximizar a riqueza dos accionistas por esta ser desprovida de visão. Os seus líderes também resistiram ao conselho dos banqueiros de aumentar os retornos dos accionistas contraindo mais dívida, porque estavam a gerir a dívida com precaução a fim de sobreviverem às mudanças fundamentais.
Para assegurar que os accionistas agressivos e os seus consultores não prejudicavam o valor a longo prazo da empresa, a DSM também teve de ser flexível. O falecido Peter Elverding, CEO e chairman do CA de 1999 a 2007, notou que os líderes resistiam o mais possível à recompra de acções, mas admitiu que «por vezes recomprávamos uma pequena quantidade se a pressão fosse demasiado alta». Recentemente, a DSM anunciou a recompra de acções no valor de mil milhões de euros e um programa regular de recompra.
PROCURAR A CRIAÇÃO DE VALOR A LONGO PRAZO
As experiências citadas ao longo de todo este estudo mostram de forma sucinta como a criação de valor a longo prazo para os accionistas pode exigir mudanças estratégicas substanciais para haver uma adaptação às condições do sector. Para negociarem essas correntes, os executivos devem identificar e mobilizar criadores de valor existentes e futuro, forjar acordos com eles e desenvolver uma cultura de suporte. Devem também prestar atenção ao bem-estar dos stakeholders mais vulneráveis com potencial para criarem valor, como os funcionários que de outra forma se podem tornar vítimas da transformação e, onde possível, envolvê-los em iniciativas onde todos saem a ganhar.
Fazer tudo isto ao mesmo tempo que se impede outros stakeholders de prejudicarem o valor da empresa exige uma avaliação cuidadosa a quem cria valor a longo prazo agora e a quem tem potencial para o fazer. Essa avaliação oferece uma base para o desenvolvimento de abordagens diferenciadas e adaptáveis para cada um dos grupos de stakeholders, para que as empresas evitem as armadilhas a curto prazo que atrapalham tantas organizações. O enfoque em interesses a longo prazo partilhados permite aos executivos satisfazerem de forma responsável e ética os seus deveres fiduciários para com o negócio sem sucumbirem à crença habitual, mas errada, de que os líderes têm a obrigação legal de maximizar os retornos a curto prazo para os accionistas.
No fim, a DSM tem sido bem clara sobre a importância de criar valor a longo prazo para os accionistas e para outros stakeholders. «Quando queremos ter um impacto socialmente positivo, não temos um cheque em branco. Continuamos a enfrentar os dilemas de qualquer negócio», afirmou Geraldine Matchett, CEO e co-CEO da DSM, no ano passado. Os líderes da empresa, acrescenta, compreendem que «têm o privilégio de estarem numa organização guiada por um propósito se – e apenas se – cumprirem o desempenho financeiro».
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Artigo publicado na revista Executive Digest n.º 173 de Agosto de 2020