Prevenir o sexismo e o racismo com os manuais escolares? Especialistas sugerem cautelas e pais ‘exigem’ participação

O Governo quer combater o sexismo e o racismo nas escolas. Para o efeito, lançou o ‘Guia Direito a Ser’, destinado aos docentes, com orientações para a prevenção e combate à discriminação e violência em contexto escolar.

E em que consiste o ‘Guia Direito a Ser’? Um manual para tornar a escola mais inclusiva.

De acordo com a Direção-Geral de Educação, um estudo “A long way to go for LGBTI equality”, da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), publicado em 2020, concluiu que a educação é uma das áreas em que as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo (LGBTI+) sofrem experiências de discriminação e violência.

Neste estudo, foram apresentados alguns resultados para Portugal: apenas uma pessoa em cada dez jovens LGBTI+, entre os 15 e os 17 anos, relatou ser muito aberta relativamente à sua orientação e identidade de género na escola. Cerca de dois terços das pessoas inquiridas já se sentiram discriminadas e testemunharam comentários ou condutas negativas, sempre que alguma pessoa era identificada como LGBTI+. Aproximadamente metade relatou ter sido vítima de bullying.

Para combater estes números, o Governo pretende um esforço transversal ao estabelecimento de ensino, que envolva professores, pais, diretores, pessoal não docente e editoras de manuais escolares. “O compromisso do Ministério da Educação é o de desenvolver, durante o próximo ano letivo, ações concretas junto das editoras de manuais escolares e de comissões de avaliação de manuais escolares, no sentido de as sensibilizar para a temática, bem como estabelecer pontos de entendimento comuns relativamente à aplicação dos critérios já definidos na lei”.

Está também prevista “a formação contínua de pessoal docente, de todos os ciclos de escolaridade obrigatória, sobre a igualdade entre homens e mulheres e a sua transversalização no currículo” para garantir as condições para uma educação e uma formação livres de estereótipos de género.

Valores, ideais e tradições

A iniciativa foi já avançada em outros países, no qual foi sentida a resistência dos pais, em particular de alunos entre o 1º e 4º ano, perante o tema. E em Portugal, poderemos assistir à mesma contestação? Para responder a esta questão, contactada pela ‘Executive Digest’, a psicóloga Catarina Lucas, diretora do centro com o mesmo nome, explicou que estas ações “não podem ser vistas como imposição”.

“Vamos tendo algumas ações nas escolas, com diretores de turma, em Portugal, sobre estes temas e temos visto reações adversas dos pais, que indicam que é uma imposição. Como se se quisesse cortar com valores, ideais e tradições. No fundo, estamos a normalizar temas que os pais veem como uma imposição. Medidas destas é preciso ter cuidados perante as preocupações dos pais, que podem ter valores divergentes, e que se preocupam que sejam impostos novos ideais aos miúdos”, explicou a especialista.

A Clínica Catarina Lucas trabalha com diversas escolas nas zonas de Lisboa e Cascais e estes são temas com os quais “as crianças estão familiarizadas”. “Até mesmo porque estão expostas às redes sociais, onde assistem a estes temas por vezes de forma assertiva, outras como expressão de ódio e agressividade”, considerou.

“Os miúdos têm de se ir introduzindo nestas temáticas mas com cuidados. É preciso que a comunidade escolar trabalhe de forma transversal. No fundo, temos sempre de integrar toda a comunidade escolar, todos os que estão à volta das crianças. Se só surgir nos manuais escolares, o trabalho fica incompleto. Mas como se abordam estas temáticas com as crianças sem as chocar?”, questionou.

“Temos de saber olhar para a nossa comunidade, as novas ideias são tendencialmente mal recebidas. Tem de ser gradual, embora as crianças tenham uma capacidade de aprendizagem extraordinária. Há coisas que chocam os adultos mas não chocam as crianças. Há que perceber que os miúdos crescem numa época diferente em termos de informação do que a dos pais. Mas não podemos diabolizar os pais. As crianças encaixam de forma diferente”, frisou a psicóloga.

No fundo, sustentou, é uma questão de equilíbrio. “É preciso percebermos qual o grau de exposição a estes conteúdos das crianças, equilibrar a balança e colocar mais à reflexão das mesmas e não tanto como uma imposição”, concluiu.

É essencial “o envolvimento de todos”

Também a Ordem dos Psicólogos, na pessoa de Marisa Carvalho, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia da Educação, sublinhou tratar-se de uma “questão desafiante conciliar perspetivas e conceções para estes temas, sobretudo questões de género ou identidade de género, que são sempre mais sensíveis.”

De acordo com a especialista, “há um trabalho importante a se feito a vários níveis, com uma estratégia intencional por trás, para que todos percebam o valor da diversidade e contribuir para a valorização das diferenças, seja no meio escola seja fora dele”. E como se atinge? “Com estratégias afirmativas, ativas, seja através do currículo, dos manuais escolares, da formação dos intervenientes, tocando nestes temas para trazer para cima da mesa as características individuais para serem sujeitas a reflexão.”

“Em Portugal temos legislação da educação inclusiva mas é sobretudo dirigida às escolas e profissionais. Mas a base deve ser alargada a toda a comunidade. Os próprios alunos são elementos importantes de mudança. A comunidade mais alargadas – editoras – diria que há todo um conjunto de associações e instituições que devem ser envolvidas neste processo de valorização destes princípios, que não devem ser vividos apenas dentro dos muros da escola”, frisou Marisa Carvalho, sublinhando que é essencial “o envolvimento de todos”.

O tema é sensível na comunidade escolar, pelo que é importante ter cuidados. “Não se trata de sexualizar a mensagem mas discutir a diversidade e os seus valores. O que podemos fazer nos manuais escolares é que os textos e imagens sejam mais diversas e menos sexistas. Por exemplo, em Estudo do Meio, para os mais pequenos, seja na Matemática ou Português para os mais velhos, podemos usar exemplos diversos que não seja conceção única e binária da sociedade”, destacou, lembrando que “diferentes idades implicam diversas formas de abordagem ao tema e com certa adequação das imagens e textos propostos. A ideia não é impor conceções mas ajudar a construir uma educação mais diversa.”

E é expectável a contestação dos pais a estas mensagens? “Se as medidas forem ancoradas com o trabalho já feito nas escolas – há escolas mais preparadas para receber estas medidas do que outras – e articuladas com instituições da comunidade, e sendo de implementação progressiva, a contestação pode ser mínima”, indicou, frisando que “há que valorizar os psicólogos nas escolas como figuras importantes neste processo, porque conhecem a comunidade e podem assim dar um contributo importante”.

Confederação Nacional das Associações de Pais lamenta não tenha sido chamada

É justamente este ponto que pode causar maior discórdia com a iniciativa do Governo – poderá haver contestação dos pais a estas políticas de prevenção? Mariana Carvalho, presidente da CONFAP – Confederação Nacional das Associações de Pais – lamentou, à ‘Executive Digest’, que a confederação não tenha sido chamada para a iniciativa governamental.

“Não conhecemos profundamente o plano definido mas há muitas questões que se levantam, sobretudo como se vai operacionalizar. O que verificamos muitas vezes é haver uma equipa multidisciplinar que não conta com os pais. Ora, é essencial que os pais participem antes da implantação no terreno. Se for depois, já só vamos corrigir muitas situações”, revelou.

“São as equipas multidisciplinares que vão estabelecer estratégias claras. Peço que os pais sejam incluídos. Tudo o que seja prevenção de qualquer tipo de agressão merece a concordância da CONFAP, a escola tem de ser um espaço de liberdade e respeito. Mas temos de salvaguardar que, de facto, isso aconteça. O que pode acontecer ao incluirmos determinadas estratégias é potenciar o que estamos a tentar prevenir. Tenho muitas reservas da operacionalização”, referiu.

Mariana Carvalho referiu ainda que o plano de ação “não pode ficar fechado e só então são chamados os pais, que sentir-se-ão excluídos. Sem os pais, esta prevenção dificilmente funciona. Se tivermos um tipo de regras e não nos identificamos em casa, ou vice-versa, não vamos nunca conseguir ser a extensão entre a comunidade escolar e a família. Isto só se consegue com diálogo e com o agregar de vontades”, concluiu.

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