“Ordem e bacalhau”: Memes que se referem a Portugal como “Guiana Brasileira” geram revolta e reacendem debate sobre xenofobia

Nas últimas semanas, Portugal tornou-se o protagonista involuntário de uma nova vaga de humor viral nas redes sociais brasileiras. Entre memes, vídeos e sátiras, surgiu o conceito da “Guiana Brasileira”, uma brincadeira que apresenta Portugal como se fosse um território anexado pelo Brasil — e que já gerou tanto risos como indignações.

A ideia, que circula principalmente nas plataformas X (antigo Twitter), TikTok e Instagram, trata Portugal como o mais recente “estado brasileiro”, fazendo troça do passado colonial português e do crescente fluxo migratório de cidadãos brasileiros para território luso. Alguns utilizadores referem-se mesmo ao país como “o 28.º estado do Brasil” ou “um pedacinho do Brasil na Europa”.

A brincadeira assenta numa lógica de “reparação histórica”, invertendo simbolicamente os papéis coloniais. Um dos memes mais partilhados apresenta Portugal como “um exclave brasileiro, mais conhecido como Guiana Brasileira, rebaptizado pelos novos colonizadores que chegaram a Portugal através dos dados móveis, navegando por mares nunca d’antes navegados”, numa alusão irónica aos Lusíadas de Luís Vaz de Camões.

Outros propõem nomes alternativos para este novo “Portugal colonizado”, como “Vitória da Reconquista”, “Ilha de Camões”, “Rio de Fevereiro” ou “Pernambuco em pé”. Há até propostas para uma bandeira própria, um hino e uma moeda oficial com a efígie de Cristiano Ronaldo. Um dos lemas mais populares que circula online é “Ordem e Bacalhau”, numa paródia ao lema da bandeira brasileira, “Ordem e Progresso”.

Apesar do tom humorístico, a vaga de memes tem sido recebida com crescente desconforto por muitos portugueses, que acusam os autores de falta de respeito, revisionismo histórico e até xenofobia disfarçada de graça. As redes sociais tornaram-se palco de confrontos verbais entre utilizadores portugueses e brasileiros, num ambiente cada vez mais polarizado.

“Reverso do colonialismo” ou incitamento à hostilidade?
Alguns brasileiros também têm manifestado desconforto com a tendência, reconhecendo que a brincadeira pode agravar tensões entre os dois povos. “Estes memes só servem para aumentar a xenofobia e a intolerância, não contribuem para o respeito e bom convívio entre os povos”, lamentou uma utilizadora no X.

“Falam mal, mas na primeira oportunidade mudam-se para lá”, ironizou, em resposta, um internauta brasileiro, num tom que reflete as tensões latentes sobre o fenómeno migratório. Por sua vez, um utilizador português respondeu com dureza: “Conquistem antes a vossa terra, porque depois de Portugal vos ter deixado no dia 7 de Setembro de 1822, o Brasil ficou igual a uma selva”.

Este tipo de comentários contribuiu para que a discussão se tornasse viral e chamasse a atenção de figuras públicas como o influenciador brasileiro Felipe Neto. Numa tentativa de aliviar o tom, Neto — que diz ter “metade da família portuguesa” — garantiu que “é tudo com carinho” e que “está tudo em paz”. No entanto, não resistiu a provocar: “Com todo o respeito, estamos a fazer o processo de colonização reversa do idioma”, referindo-se à influência crescente do português do Brasil entre os jovens portugueses.

Humor, identidade e imigração
O fenómeno dos memes da “Guiana Brasileira” surge num momento em que a imigração brasileira em Portugal está em alta, com números recorde. Segundo dados oficiais do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), os brasileiros representam a maior comunidade estrangeira residente no país, com mais de 400 mil cidadãos legalmente registados.

Este contexto tem motivado tanto manifestações de integração como tensões culturais, sendo muitas vezes amplificadas pelas redes sociais. O humor, neste caso, surge como campo de batalha simbólica entre diferentes percepções de identidade, pertença e passado colonial.

Um fenómeno a observar
Apesar de muitos considerarem o fenómeno apenas uma piada sem consequências, especialistas em comunicação e sociologia alertam para os seus efeitos. “As redes sociais transformaram-se em espaços onde as fronteiras entre humor e hostilidade são cada vez mais difusas. Estes conteúdos, ainda que satíricos, podem reforçar estereótipos e ressentimentos latentes”, explicou à imprensa portuguesa uma investigadora do ISCTE que acompanha fenómenos de cultura digital.

Enquanto isso, os memes continuam a multiplicar-se, e a tensão entre brincadeira e ofensa permanece. Para uns, Portugal continua a ser uma nação soberana com um legado histórico complexo; para outros, pelo menos no universo virtual, tornou-se o mais novo “território tropicalizado” do Brasil — com ou sem “bacalhau na bandeira”.