Mensagens apagadas, responsabilidades ausentes: Os casos de políticos europeus envolvidos em escândalos de destruição de provas digitais

Uma série de instituições da União Europeia (UE) tem sido alvo de críticas e investigações por alegadamente apagarem ou se recusarem a divulgar mensagens de texto e comunicações digitais trocadas em contextos de alata relevância e interesse públicos – desde negociações de vacinas durante a pandemia da Covid-19 e até casos de alegadas práticas anticoncorrenciais.

A mais recente decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), tornada pública esta quarta-feira, veio reforçar a exigência de transparência institucional, ao concluir que a Comissão Europeia violou a lei ao recusar-se a fornecer acesso às mensagens trocadas entre a presidente Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, Albert Bourla, sobre contratos de vacinas durante a pandemia da Covid-19.

Segundo o acórdão, a Comissão “não pode simplesmente alegar que não possui os documentos solicitados”; deve apresentar justificações credíveis que permitam ao público e ao próprio Tribunal compreender por que razão esses documentos não podem ser localizados.

O caso, interposto pelo New York Times, revelou um padrão que se tem repetido em várias instâncias governamentais na Europa: a alegada destruição ou ocultação de mensagens que deveriam integrar os arquivos oficiais. Eis outros episódios notórios:

Nokia-gate: a prática sistemática de Mark Rutte
Mark Rutte, primeiro-ministro dos Países Baixos entre 2010 e 2024, foi apanhado a apagar sistematicamente mensagens de texto do seu velho telemóvel Nokia 301. O caso, divulgado pela imprensa holandesa em 2022, revelou que Rutte apenas encaminhava para os serviços administrativos as mensagens que ele próprio considerava relevantes, eliminando as restantes por “falta de espaço de armazenamento”.

A controvérsia levou o parlamento neerlandês a exigir um debate urgente, sob o argumento de que correspondência oficial não pode ser destruída ao critério de um governante.

Já em 2019, o Conselho de Estado dos Países Baixos tinha decidido que mensagens de texto e comunicações por WhatsApp, mesmo em dispositivos pessoais, devem ser preservadas e podem ser alvo de pedidos ao abrigo da Lei de Informação Governamental se forem trocadas no contexto do exercício de funções públicas.

Obstáculos a investigações de concorrência
A destruição de mensagens pode também acarretar consequências financeiras graves. Em 2024, a Comissão Europeia multou em 15,9 milhões de euros a empresa International Flavors & Fragrances Inc. (IFF) e a sua filial francesa por obstruírem uma inspeção em 2023.

Durante essa operação, um alto funcionário da IFF terá apagado mensagens trocadas por WhatsApp com concorrentes, depois de já ter sido informado da investigação em curso. A Comissão Europeia classificou o incidente como “de natureza muito grave”.

Em linha semelhante, a Autoridade neerlandesa da Concorrência (ACM) multou em 2019 uma empresa não identificada em 1,84 milhões de euros por comportamento idêntico. “Durante uma inspeção, funcionários da empresa investigada por acordos anticoncorrenciais saíram de grupos de WhatsApp e apagaram conversas. Isso é proibido”, alertou então o regulador.

Escócia: mensagens apagadas durante a pandemia
O inquérito nacional escocês à resposta à Covid-19 revelou em 2023 que a então primeira-ministra Nicola Sturgeon, juntamente com outros ministros e altos responsáveis da saúde, apagaram todas as mensagens de WhatsApp relacionadas com a gestão da pandemia.

Sturgeon sempre alegou estar “totalmente comprometida com a transparência”, mas o inquérito teve dificuldade em compreender as decisões tomadas pelo governo, devido a respostas incompletas ou vagas aos pedidos de documentação.

John Swinney, vice-primeiro-ministro escocês à época, admitiu ter apagado manualmente mensagens enviadas a Sturgeon, alegando estar a seguir a política interna de registo do governo escocês. Segundo disse perante o inquérito do Reino Unido, essa prática vigorava desde 2007 e nunca fora questionada até então.

Alemanha: e-mails privados e uma indemnização milionária
Na Alemanha, o então ministro dos Transportes, Andreas Scheuer, foi acusado em 2020 de utilizar e-mails e números de telefone pessoais para conduzir negociações sobre um polémico sistema de portagens rodoviárias. Como os conteúdos dessas comunicações não foram armazenados nos registos oficiais do ministério, ficaram fora do alcance de pedidos de acesso à informação.

O projeto de Scheuer viria a ser considerado ilegal pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2019, mas nessa altura já tinham sido assinados contratos multimilionários. As empresas operadoras exigiram então indemnizações de cerca de 560 milhões de euros ao Estado alemão.

Uma cultura de opacidade?
Estes episódios, dispersos por vários países e níveis institucionais, revelam um padrão preocupante de opacidade na administração pública europeia, especialmente em momentos de crise ou em contextos com grandes interesses económicos em jogo.

A decisão do TJUE esta semana poderá estabelecer um precedente importante para travar esta prática, forçando as instituições a reconhecerem que mensagens digitais — mesmo as trocadas por WhatsApp ou SMS — fazem parte da documentação oficial quando relacionadas com decisões governativas.

Com a pressão crescente da opinião pública, dos meios de comunicação e de tribunais, a era da impunidade digital entre líderes políticos europeus poderá estar a chegar ao fim. Mas o caso de Von der Leyen, que ainda decorre, continua a ser um teste decisivo ao compromisso da Comissão Europeia com a transparência.