
Itália começa hoje referendo que pode mudar regras de acesso à cidadania
Os italianos começaram hoje a votar num referendo que poderá redefinir profundamente as regras de acesso à cidadania para estrangeiros residentes no país. Entre as cinco propostas legislativas sujeitas a referendo nestes dois dias, destaca-se a que pretende reduzir de dez para cinco anos o tempo mínimo de residência legal exigido para requerer a nacionalidade italiana.
A proposta de alteração à Lei n.º 91 de 1992, que regula o acesso à cidadania, é promovida por forças políticas como o partido +Europa, e visa uma flexibilização do atual quadro legal. Segundo Riccardo Magi, secretário-geral do +Europa, esta revisão é essencial para combater aquilo que classifica como “uma legislação antiga e injusta”, que impede centenas de milhares de jovens nascidos ou criados em Itália de serem reconhecidos como italianos.
“Aqueles que têm raízes, trabalham, pagam impostos, estudam, devem poder votar e participar em concursos públicos. Esta é a ideia liberal de cidadania”, afirmou Magi em entrevista à Euronews, defendendo que o referendo representa “uma escolha sobre o tipo de país e democracia que queremos ser”.
O dirigente liberal sublinha que a proposta mantém inalterados os restantes requisitos legais — como a ausência de antecedentes criminais, a prova de rendimento e o conhecimento da língua italiana — alterando apenas o critério temporal. Acredita que esta mudança poderá beneficiar diretamente muitos menores residentes em Itália, permitindo-lhes obter a cidadania por transmissão parental.
A oposição à proposta vem sobretudo dos partidos da maioria de centro-direita, incluindo o Noi Moderati, que considera inadequado o uso de referendos para tratar uma matéria tão complexa. Para Maria Chiara Fazio, vice-presidente do Noi Moderati, “a cidadania é o elo mais profundo entre o Estado e o indivíduo” e, por isso, não deve ser simplificada num referendo.
“É um tema que requer um estudo aprofundado, uma escuta mútua e um debate parlamentar sério”, afirmou Fazio à Euronews. Defendendo os atuais dez anos como “um prazo justo e congruente”, reconheceu, no entanto, que existem dificuldades administrativas que podem e devem ser resolvidas — mas não, diz, à custa de alterar o conteúdo substancial da lei.
A vice-presidente considera ainda que o referendo corre o risco de se tornar num “instrumento ideológico”, alheio à complexidade do fenómeno migratório e às diferenças estruturais entre os países europeus frequentemente usados como termo de comparação.
Fazio deixou, contudo, uma abertura ao debate parlamentar sobre o conceito de ius scholae — que permitiria reconhecer a cidadania a crianças que crescem e estudam em Itália. “Mas o sítio certo para fazê-lo é o parlamento, e não através de referendo”, frisou.
Divisões entre os partidos
No espectro político italiano, as posições estão claramente divididas. Entre os partidos da coligação governamental, incluindo os Fratelli d’Italia, a Lega e o Forza Italia, a tendência foi para o boicote da votação, com apelos à abstenção e oposição declarada à proposta de alteração da lei da cidadania.
Do lado da oposição, o Partido Democrático, o Itália Viva e a Aliança Verde-Esquerda manifestaram apoio claro à proposta, enquanto o Movimento 5 Estrelas optou por deixar liberdade de voto, embora o seu presidente, Giuseppe Conte, tenha anunciado que votará “sim”.
Já o partido centrista Azione declarou-se a favor da mudança, embora tenha criticado o uso do referendo como instrumento para alterar a legislação.
Como se adquire a cidadania em Itália
A cidadania italiana pode ser adquirida por diferentes vias, conforme estabelecido na Lei n.º 91/1992:
- Naturalização por residência: requer atualmente dez anos de residência legal e contínua, além de provas de integração, rendimento, ausência de registo criminal e conhecimento da língua.
- Casamento com cidadão italiano: o prazo é reduzido para dois anos (três se residir no estrangeiro), com redução adicional se o casal tiver filhos.
- Jure sanguinis: direito de sangue, aplicado a descendentes de italianos.
- Ius soli (nascimento em solo italiano): não confere automaticamente cidadania; menores nascidos em Itália de pais estrangeiros apenas podem requerê-la aos 18 anos, desde que tenham residido legalmente e sem interrupções no país desde o nascimento.
Esta última regra deixou centenas de milhares de jovens em situação indefinida, o que é frequentemente apontado como um dos problemas mais gritantes da atual legislação.
Referendos revogatórios: funcionamento e implicações
O referendo de 8 e 9 de junho decorre ao abrigo do artigo 75.º da Constituição italiana e é um instrumento de democracia direta que permite revogar, total ou parcialmente, leis em vigor. Para que tenha validade, exige a participação de pelo menos 50% mais um dos eleitores registados.
Se o “sim” vencer e o quórum for atingido, a parte da lei em causa será revogada com efeitos vinculativos. Caso o “não” vença, ou não se atinja o quórum, a legislação permanece inalterada.
Além da cidadania, estão em votação outras quatro questões relacionadas com leis laborais, designadamente sobre contratos públicos, segurança no trabalho e proteção dos trabalhadores precários. Cada pergunta será decidida individualmente pelos eleitores.
Os resultados finais serão conhecidos após o encerramento das urnas na segunda-feira, 9 de junho. Até lá, o país debate-se com questões centrais sobre identidade, inclusão e o papel da cidadania numa sociedade em mudança.