O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, insiste em alcançar a chamada “vitória total” na Faixa de Gaza. No entanto, quase dois anos após o início da guerra, continua sem apresentar um plano concreto para atingir esse objetivo ou para o cenário que se seguirá ao fim do conflito. Segundo revelou o jornal El Confidencial, nem o seu próprio gabinete conhece um plano para pôr termo à guerra, o que terá contribuído para a sua rutura com o antigo ministro da Defesa, Yoav Gallant.
Ainda assim, Netanyahu convocou, esta terça-feira, o seu gabinete de guerra para discutir “a continuação dos combates” e a possível “expansão para zonas onde se acredita haver reféns”, conforme comunicado oficial. Num encontro com a imprensa, o seu porta-voz foi mais longe, declarando que Israel pretende “ocupar por completo a Faixa de Gaza”.
A ambição de Netanyahu não é, no entanto, partilhada pelas principais figuras das Forças de Defesa de Israel (FDI). O atual chefe do Estado-Maior, Eyal Zamir, e outros altos responsáveis militares opõem-se à anexação da Faixa ou à imposição de um governo militar no enclave — propostas defendidas pelos ministros ultranacionalistas Itamar Ben Gvir (Segurança Nacional) e Bezalel Smotrich (Finanças).
A divisão entre o governo e o Exército tem vindo a acentuar-se. Após mais de 300 dias de mobilização contínua, os reservistas estão exaustos, e a legislação que isenta os judeus ultraortodoxos do serviço militar agravou as tensões internas. Cresce o receio de que muitos reservistas recusem continuar a combater se não forem definidos objetivos claros para o conflito.
Apesar disso, Netanyahu não parece recuar. O cenário de um fim à guerra continua a parecer longínquo, difícil e incerto. Mais de 60 mil palestinianos terão morrido em Gaza às mãos de Israel, segundo El Confidencial, e os ataques mantêm-se, mergulhando a população civil na fome e na miséria.
Apoio de Israel a grupos criminosos para minar o Hamas
Face à falta de uma alternativa política aceitável para Israel dentro da Faixa de Gaza, o governo israelita terá recorrido a uma estratégia arriscada: apoiar financeiramente clãs criminosos locais, com o objetivo de enfraquecer o Hamas e posicioná-los como alternativa política.
O jornal espanhol denuncia que Israel financia há meses o clã Tarabin — o maior da península do Negueve. Netanyahu terá admitido publicamente, em junho, que esse apoio “não era algo mau”, justificando que poderia “salvar vidas de soldados israelitas”.
Entre os elementos mais destacados deste clã está Yasser Abu Shabab, oriundo de Rafah, que lidera uma milícia autodenominada Forças Populares. Após ter sido preso pelo Hamas em 2015 por tráfico de droga e condenado a 25 anos de prisão, Shabab escapou durante a guerra e reconstruiu a sua rede, agora com cerca de 300 membros. Apesar do seu passado ligado ao tráfico e ao terrorismo, os meios israelitas tentam promovê-lo como uma alternativa ao Hamas.
No entanto, segundo a ONU, a sua milícia é suspeita de saquear camiões de ajuda humanitária. “Não tem qualquer autoridade e toda a gente em Gaza o odeia. Temos medo de que, depois da guerra, haja outra guerra entre a milícia de Shabab e o Hamas”, afirmou ao El Confidencial Ghasan Jawad, médico palestiniano que recentemente conseguiu sair da Faixa.
“Estamos a apoiar criminosos que antes atacaram Israel”
A crítica à estratégia de Netanyahu é partilhada dentro de Israel. Michael Milshtein, diretor do Fórum de Estudos Palestinianos do Centro Moshe Dayan da Universidade de Tel Aviv, considera que “não se trata de apoiar clãs tradicionais”, mas sim “de bandas criminosas que Israel está a encorajar para controlar certas zonas”.
Milshtein alerta que estas milícias não são alternativa viável ao Hamas. “Estamos a apoiar criminosos que anteriormente atentaram contra Israel. É um erro enorme e mostra que não aprendemos nada com a nossa história nem com a história internacional”, afirmou. O analista recorda o apoio dos EUA aos talibãs nos anos 80 como um exemplo de estratégia que se virou contra quem a implementou.
Com experiência militar em Gaza, Milshtein sublinha que uma ocupação total da Faixa traria um custo humano, económico e estratégico elevado. “Seria como o Iraque em 2003 para os EUA: guerrilha, atentados e um pesadelo logístico. Controlar dois milhões de pessoas que te odeiam numa zona destruída é inviável.” Acrescenta ainda que uma ocupação arruinaria as relações diplomáticas com o mundo árabe: “Arábia Saudita e outros países abandonariam qualquer processo de normalização. O Egipto teme uma expulsão dos palestinianos para o Sinai. Seria uma crise enorme”.
Estratégia repetida do passado
Khaldoun Barghouti, analista político palestiniano da Cisjordânia, compara esta tentativa israelita de criar uma autoridade paralela em Gaza com outras tentativas no passado. “Israel já tentou algo semelhante nos anos 80 na Cisjordânia, com a chamada União das Aldeias — uma liderança palestiniana local financiada e armada por Israel. O povo rejeitou-a e fracassou”.
Barghouti acredita que Netanyahu evita discutir o “dia seguinte” porque “não quer acabar a guerra”. Tem rejeitado todas as propostas de solução política para o futuro de Gaza, mesmo aquelas que envolvem a Autoridade Palestiniana, organizações internacionais ou países árabes. “Netanyahu quer que apenas Israel governe Gaza”, afirma.
Recorda ainda o precedente do Líbano, quando Israel criou o chamado Exército do Sul do Líbano para controlar os territórios ocupados. “Procuram sempre uma autoridade local que sirva os seus interesses, não os da população ocupada”, sublinha.
Um futuro político destruído
Para Barghouti, a ausência de perspetiva política é tão grave em Gaza como na Cisjordânia, onde os colonatos ilegais e a violência dos colonos se têm intensificado desde o início da guerra. Os ministros Ben Gvir e Smotrich defendem a ocupação total da Cisjordânia com base em preceitos religiosos, o que, na sua opinião, impossibilita qualquer futuro acordo de paz.
O analista acusa Netanyahu de colocar sempre o seu interesse pessoal acima do bem do Estado israelita. “Tem feito isso desde os tempos de Rabin, quando se opunha ao processo de paz”, lembra. “Agora, Israel está oficialmente contra uma solução de dois Estados. Então, que futuro resta aos palestinianos?”, questiona.














