Explosão de bairros de barracas na Grande Lisboa: três mil famílias vivem em construções ilegais devido à crise na habitação

Apesar de terem emprego, milhares de famílias estão a ser empurradas para bairros de barracas ilegais na Área Metropolitana de Lisboa (AML), onde vivem sem água, luz ou saneamento. Segundo dados apurados pelo Expresso, há atualmente 27 bairros deste tipo na região, um número que duplicou face ao último levantamento realizado em 2019. O agravamento da crise habitacional está a fazer renascer fenómenos que muitos julgavam extintos, com cerca de três mil famílias a residirem hoje em habitações precárias.

O Bairro do Talude, em Loures, é um dos exemplos mais flagrantes. Numa encosta com vista para o Tejo, por entre postes de alta tensão, crescem semanalmente barracas de chapa e contraplacado. A maioria não tem janelas, casas de banho ou eletricidade, como a de Albertina, uma mulher são-tomense de 62 anos. Depois de deixar de conseguir pagar um quarto alugado por €300, viu-se forçada a construir um abrigo com os poucos meios ao seu alcance. Trabalha seis dias por semana, nas limpezas de um supermercado em Lisboa, por apenas €307 mensais. “Nem com trabalho consigo pagar uma casa”, diz ao Expresso.

As histórias multiplicam-se com contornos semelhantes. Jenicia, de 20 anos, também de São Tomé, ganha €700 por mês a cuidar de uma idosa em Lisboa, em regime de recibos verdes. Com esse rendimento, sustenta a mãe doente e pagou €900 para construir a sua barraca no mesmo bairro. “Pedi o meu primeiro salário adiantado para comprar as chapas e pagar ao senhor que nos ajudou”, conta. No Talude vivem cerca de 80 famílias, quase todas de origem são-tomense, mas o número cresce a cada semana.

Este fenómeno não se limita a Loures. Os novos dados do Expresso, recolhidos junto das 18 autarquias da AML, revelam que seis concelhos — Almada, Amadora, Loures, Odivelas, Seixal e Vila Franca de Xira — concentram os maiores bairros de barracas. Em Lisboa, Barreiro e Montijo as situações são pontuais e dispersas. O crescimento é particularmente notório em Almada e Loures, com alguns bairros a duplicarem a sua população em apenas um ano. Penajoia, por exemplo, junto ao Hospital Garcia de Orta, em Almada, tinha 300 famílias em 2024 e ultrapassa agora as 600.

O geógrafo Gonçalo Antunes, da Universidade Nova de Lisboa, sublinha que “a população com rendimentos mais baixos ficou completamente excluída do mercado formal de habitação”, o que levou ao reaparecimento dos bairros de lata. “É inaceitável que em 2025 haja famílias a viver sem água, saneamento ou eletricidade”, afirma, criticando a falta de respostas estruturais por parte do Estado.

Grande parte destas famílias são imigrantes legais com emprego. Trabalham na construção civil, em limpezas ou no apoio a idosos e crianças. Muitos já viveram em apartamentos arrendados, depois passaram a quartos, até que a subida das rendas os deixou sem alternativas. Emanuel Pina, cabo-verdiano conhecido como “King”, mora com a mulher e o filho de cinco anos em Penajoia, depois de perder o apartamento onde pagava €600 mensais. “Trabalho, sou segurança, mas tive de construir uma casa ilegal. Foi a única forma de dar um teto à minha família”, afirma ao Expresso.

Alguns bairros revelam uma organização surpreendente. Em Penajoia, as casas são construídas com tijolo, telhas, portas e janelas de PVC. Têm divisões bem estruturadas, canalização improvisada, tetos falsos e até focos de luz. Cada casa tem um número pintado a stencil e há responsáveis por lotes que zelam pela limpeza. Micael, que ali vive com sete familiares depois de pagarem €1000 por dois quartos em Queluz, mostra com orgulho a sua casa: “Só precisamos que nos deixem ter água e luz. Podemos pagar porque trabalhamos. Só não conseguimos pagar uma casa normal.”

Segundo o Expresso, há autoconstruções identificadas em metade dos concelhos da AML e o país regista oficialmente 143 mil famílias em situação de carência habitacional — embora o número real possa ser superior. A realidade destes bairros de barracas, agora mais organizados e habitados por trabalhadores com rendimentos baixos, expõe as falhas profundas na política de habitação e levanta a pergunta: até quando se vai aceitar que, num país europeu em 2025, milhares vivam em condições do século passado?

Almada: novos bairros surgiram após realojamentos
Na Estratégia Local de Habitação de Almada, atualizada em 2021, estavam identificados quatro bairros de barracas. Entretanto, o Terras da Costa foi demolido e os seus habitantes realojados, tal como parte significativa do bairro do 2º Torrão. Contudo, surgiram novos núcleos, como o Bairro do Raposo e o Penajoia, onde vivem atualmente cerca de mil famílias. A autarquia já adquiriu 49 fogos para realojamento, reabilitou 343 casas municipais e prevê a construção de mais 270 habitações.

Amadora: rendas disparam, bairros resistem
A Amadora ainda tem cinco bairros abrangidos pelo PER onde vivem 2599 pessoas. Ao longo dos anos, estas zonas foram equipadas com luz, água, saneamento e recolha de lixo, mas as casas continuam a ser precárias. A pressão imobiliária é forte: as rendas no concelho aumentaram 47% em apenas cinco anos. A eliminação dos bairros deverá estar concluída até 2029, com a construção de 363 novos fogos, a reabilitação de 235 habitações e apoio financeiro a 897 famílias.

Barreiro: sem bairros, mas com centenas à espera
O concelho do Barreiro não tem atualmente bairros de barracas identificados, mas há situações de precariedade habitacional dispersas. O elevado número de candidaturas à habitação municipal — 1150 — evidencia a dificuldade crescente dos munícipes em aceder a uma casa digna no mercado privado.

Lisboa: sem bairros, mas com tendas e sem-abrigo a aumentar
Na capital, já não existem bairros de barracas formais. Contudo, há situações pontuais de construções clandestinas que vão sendo removidas à medida que são sinalizadas, com os moradores a serem encaminhados para respostas sociais. O presidente da Câmara, Carlos Moedas, afirma ter já atribuído 2600 habitações e apoiado 1200 famílias no pagamento da renda. Ainda assim, é notório o aumento do número de pessoas a viver em tendas e em situação de sem-abrigo.

Loures: cinco bairros conhecidos, mas a crescer
A Câmara de Loures garante ter uma atuação firme no combate à proliferação de construções ilegais, mas não divulga números oficiais. Segundo associações que atuam no terreno, existem pelo menos cinco bairros de barracas no concelho, com cerca de 330 famílias. O problema tem vindo a agravar-se. No bairro Marinhas do Tejo, em Santa Iria, está em curso uma solução ao abrigo do programa Porta de Entrada.

Montijo: novo foco preocupa autoridades
Apesar de não existirem bairros consolidados de barracas, surgiu recentemente um pequeno aglomerado de 4 a 5 construções precárias na Caneira, sem acesso a água ou eletricidade. Os seus ocupantes terão vindo de fora da Área Metropolitana de Lisboa. A situação está a ser avaliada pelas autoridades locais para eventual realojamento.

Odivelas: nove núcleos identificados
Odivelas tem atualmente nove núcleos de alojamentos precários, onde residem 259 pessoas, maioritariamente cabo-verdianas com vínculos laborais frágeis nas áreas da construção civil e limpezas. A Câmara está a trabalhar com o programa 1º Direito para erradicar completamente as barracas até 2030.

Seixal: restam 220 famílias em Santa Marta
Nos últimos anos, o Seixal demoliu os bairros da Jamaica e do Rio Judeu. No entanto, ainda subsiste o bairro de Santa Marta de Corroios, onde vivem 220 famílias — cerca de 645 pessoas. Está previsto o seu realojamento ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Para prevenir o surgimento de novas construções ilegais, a autarquia monitoriza semanalmente o território com recurso a drones.

Setúbal: último bairro demolido em 2023
Em Setúbal, o último bairro de barracas — Quinta da Parvoíce — foi demolido em 2023. As 72 famílias que ali viviam foram realojadas. No local está prevista a construção de um novo bairro de habitação pública, com tipologias de renda apoiada e renda acessível.

Vila Franca de Xira: três bairros identificados
No concelho de Vila Franca de Xira existem três bairros precários: Clarimundo e Traseiras da Improsit, no Sobralinho, e Casal dos Estanques, em Vialonga. São aglomerados erguidos em propriedade privada e sem saneamento básico. Estão previstas intervenções para realojar 13 agregados familiares.

Outros concelhos sem registo de barracas
Os concelhos de Alcochete, Cascais, Mafra, Moita, Oeiras, Palmela, Sesimbra e Sintra indicam que não têm atualmente registo de bairros de barracas.