Caos jurídico, demoras na contagem e acusações de fraude: Como poderá ser o “dia seguinte” após as eleições presidenciais nos EUA?
As eleições presidenciais nos Estados Unidos estão a poucas horas de distância e, como em 2020, o país prepara-se para uma disputa que pode estender-se para além do dia da votação. A experiência de 2020, quando o então presidente Donald Trump declarou vitória prematura e alegou fraude eleitoral, criou um cenário de incerteza que ainda ecoa nas expectativas para 2024. Esta eleição poderá repetir o caos jurídico e político daquela época, com especialistas a alertar para o risco de crises no “dia seguinte”.
Em 2020, Donald Trump declarou-se vencedor por volta das 2h30 da manhã após observar a chamada “miragem vermelha” — um resultado temporário favorável aos republicanos que, posteriormente, se reverteu com a contagem de votos por correio, maioritariamente democratas. Apesar de a vitória de Joe Biden ter sido declarada dias depois, Trump iniciou uma campanha de 60 processos judiciais e afirmações de “eleições roubadas”, que culminaram no assalto ao Capitólio a 6 de janeiro. Agora, Trump, candidato novamente em 2024, baseia a sua campanha na ideia de que foi afastado do poder injustamente, o que pode reacender tensões caso haja um resultado controverso.
Constitucionalistas ouvidos pelo Financial Times advertem para duas potenciais crises: uma vitória apertada de Kamala Harris, que poderia desencadear uma batalha jurídica e mediática para bloquear a sua certificação, ou uma vitória de Trump, que colocaria os seus críticos em alerta sobre o que ele poderia fazer ao regressar ao poder.
Para Rosa Brooks, professora do Georgetown Law Center, se Harris vencer, as condições são diferentes das de 6 de janeiro. “Desta vez, Trump não é o presidente, o processo de certificação é mais robusto, e Biden não tolerará violência,” explica Brooks, minimizando o risco de um novo ataque ao Capitólio. No entanto, admite que uma vitória estreita de Harris ainda traria desafios, dada a polarização política e o surgimento de novas disputas de fraude eleitoral, facilitadas pela atual proximidade entre os dois candidatos nos estados-chave.
Impacto de uma diferença mínima de votos e demoras no resultado final
Com margens tão reduzidas, é possível que a contagem de votos demore vários dias, ou até semanas, devido aos processos automáticos de recontagem em estados onde a diferença seja inferior a 0,5%. Durante este período, o Comité Nacional Republicano e aliados como True the Vote e Election Integrity Network já têm mais de 100 processos em curso para contestar listas de votantes e procedimentos eleitorais, muito mais do que na altura das eleições de 2020, segundo observadores.
Mas o sistema eleitoral também está mais forte. Em 2022, o Congresso aprovou uma legislação para limitar a capacidade das legislaturas estaduais de apresentar listas de eleitores alternativas que desafiem os resultados estaduais.
Desinformação e redes sociais desempenham um papel crítico
A desinformação será outro elemento-chave, com os especialistas a preverem um impacto significativo sobre o comportamento dos eleitores e a ordem pública. Este ano, o número de conteúdos de desinformação aumentou, principalmente na rede social X, anteriormente Twitter, propriedade de Elon Musk. Musk tem partilhado teorias conspirativas sem fundamento sobre imigração e fraude eleitoral, o que inclui acusações de que o Partido Democrata estaria a “importar” eleitores ilegais. Segundo um estudo da Bloomberg, Musk já publicou mais de 1.300 vezes sobre o tema em 2024, alcançando aproximadamente 10 mil milhões de visualizações.
Al Schmidt, Secretário de Estado da Pensilvânia e principal responsável eleitoral do estado, sublinha que esta desinformação ameaça a confiança no processo democrático: “Publicar meias-verdades e mentiras descaradas nas redes sociais prejudica a nossa democracia.”
Para tornar a questão ainda mais complexa, Musk também criou uma “comunidade de integridade eleitoral” que incentiva os utilizadores a denunciar fraudes e irregularidades no voto. No entanto, os fact-checkers afirmam que é quase impossível acompanhar a disseminação massiva de informações falsas na plataforma X.
Reação em caso de vitória de Trump e potenciais consequências
Caso Trump vença, a resposta democrata poderá não seguir a narrativa de “fraude eleitoral” que os republicanos utilizaram em 2020. Mesmo que Trump perca no voto popular, ele pode vencer no Colégio Eleitoral, como em 2016. Se a decisão for influenciada pelo Supremo Tribunal, como no caso Bush v. Gore em 2000, poderá haver uma forte pressão para que Harris conteste os resultados.
Num possível empate no Colégio Eleitoral ou numa disputa judicial sobre votos, a Constituição americana atribui à Câmara dos Representantes a responsabilidade de eleger o presidente, com um voto por estado, o que poderia beneficiar Trump.
Se eleito, Trump já delineou ações para o “primeiro dia” no cargo, prometendo um indulto generalizado aos “patriotas” presos após o assalto ao Capitólio e a destituição de Jack Smith, advogado especial que lidera a investigação sobre os eventos de 6 de janeiro. “Quando eu ganhar, a Lei vai punir severamente todos os que tentaram roubar estas eleições,” publicou Trump recentemente na sua rede social.
Entre as figuras que poderiam enfrentar retaliações estão Liz Cheney, ex-deputada republicana crítica de Trump, e o general Mark Milley, ex-Chefe do Estado-Maior Conjunto, acusado por Trump de o ter “traído”. Milley impediu o ex-presidente de usar as forças armadas como ferramenta política e pode agora ser alvo de perseguições políticas.
Repercussões sobre a Constituição e a Lei da Insurreição
Trump também prometeu acionar a Lei da Insurreição, que permite ao presidente mobilizar tropas no território americano. Em 2020, alguns dos seus conselheiros, como o ex-chefe de gabinete John Kelly, impediram-no de avançar com esta medida. No entanto, para um segundo mandato, Trump poderá escolher colaboradores mais dispostos a executar estas ordens.
Para o advogado especialista em direito eleitoral Ian Bassin, o problema central é que Trump, “mesmo após tentar derrubar uma eleição livre e justa, poderá conseguir que o sistema constitucional lhe entregue o poder novamente.” Bassin sublinha que a preocupação é maior em relação à capacidade do sistema americano para enfrentar uma eventual reeleição de Trump.