
As novas prioridades militares dos EUA: guerra aos cartéis, defesa de Taiwan… mas não da Europa
Em meados de março último, o novo secretário da Defesa dos EUA, Pete Hegseth, distribuiu um memorando aos funcionários do Departamento de Defesa: o documento, intitulado ‘Orientação Estratégica Interina de Defesa Nacional’ e considerado “secreto”, não foi tornado público mas a publicação americana ‘The Washington Post’ fez um resumo abrangente do seu conteúdo, que revelou uma ideia clara das novas prioridades militares dos EUA.
O documento estabeleceu que os Estados Unidos devem recalibrar os seus interesses e redirecionar os seus recursos militares nesse sentido: a Administração Trump dá continuidade à premissa do primeiro mandato do presidente republicano de que Pequim é o grande adversário sistémico de Washington e, como tal, o Pentágono deve concentrar os seus esforços nesse confronto.
Segundo o ‘Washington Post’, o memorando descreveu detalhadamente a estratégia a seguir, incluindo as medidas necessárias para prevalecer militarmente num potencial conflito militar com a China, o que permitiu três leituras imediatas:
1º a defesa de Taiwan, especialmente a dissuasão prévia de uma potencial invasão chinesa, deve ser contabilizada entre as ações consideradas prioritárias;
2º em troca, os EUA quase certamente se absteriam de proteger outros aliados da NATO no caso de agressão russa contra qualquer um destes países;
3º o controlo, de uma forma ou de outra, de certos territórios como a Gronelândia e o Canal do Panamá é percebido como parte deste grande confronto geopolítico com Pequim, como “uma defesa dos EUA contra ameaças dentro da sua área imediata”, de acordo com os meios de comunicação americanos.
Recorde-se que Donald Trump, numa entrevista à ‘Bloomberg’ antes das eleições, mostrou-se pouco disposto a apoiar Taiwan, considerando que “fica a 15.200 km dos EUA e a 110 km da China”, o que levantou dúvidas sobre se estaria disposto a declarar guerra à China em apoio à ilha.
No entanto, o plano de Hegseth exposto no memorando tem por base um outro relatório anterior elaborado pela ‘Heritage Foundation’, o think tank que exerce mais influência entre os atuais membros da Casa Branca, a tal ponto que muitos parágrafos teriam sido copiados diretamente deste primeiro documento. E, ao contrário de Trump, os seus autores compreendem o papel essencial que Taiwan desempenha na cadeia de interesses globais dos EUA. Um deles, Alexander Velez-Green, ocupa agora um cargo interino como conselheiro sénior de defesa no Pentágono.
Taiwan é mencionado 94 vezes no relatório original da ‘Heritage Foundation’. “Hoje, por exemplo, os Estados Unidos têm um forte interesse em impedir que a China domine o Indo-Pacífico, onde a maior urgência reside em dissuadir uma potencial invasão de Taiwan. Mas já não é claro se os Estados Unidos conseguirão travar Pequim. Pior ainda, se a dissuasão falhar, existe uma possibilidade real de a China derrotar os Estados Unidos numa guerra por Taiwan”, referiu o documento. “A queda de Taiwan também enfraqueceria a capacidade dos Estados Unidos de mobilizar outros países para resistir à coerção chinesa.”
Mas há áreas onde o documento de Hegseth se distancia do relatório ‘Heritage’. Por exemplo, o destaque da importância da Europa para os EUA, indicando explicitamente que é muito menos importante do que o Indo-Pacífico, e o apelo à colaboração com os restantes países da NATO até que estes se possam defender. Assim a estratégia a seguir é reforçar a defesa interna, “assumindo riscos” no continente europeu e no resto do mundo, com a já referida exceção de Taiwan e da região asiática.
“O guia de Hegseth é extraordinário na sua descrição de uma potencial invasão de Taiwan como o único cenário que deve ser priorizado em relação a outros potenciais perigos”, escreveu o ‘Washington Post’.
O documento de nove páginas de Hegseth foi também distribuído aos comités de segurança interna do Congresso, onde foi descrito como “confuso”, segundo o ‘Post’. “Apela à retirada da presença [militar dos EUA] em quase todo o mundo, incluindo o Médio Oriente, mas o Governo concentrou-se em demonstrar poder de fogo e dissuasão contra os Houthis no Médio Oriente e em pressionar o Irão”, observou a publicação.
Onde parece haver um alinhamento completo entre estes objetivos teóricos e as ações tomadas pela administração Trump é na fronteira sul dos Estados Unidos. O memorando de Hegseth determinou que os militares desempenhem um papel mais direto no combate à imigração ilegal e ao tráfico de droga. E é isso mesmo que está a acontecer: tudo indica que os Estados Unidos estejam a preparar algum tipo de operação militar contra os cartéis do México, o que poderá ocorrer muito em breve.
Nas últimas semanas, os EUA não só designaram estes cartéis como organizações terroristas, expandindo enormemente a capacidade das autoridades para tomarem medidas legais contra as suas redes logísticas e financeiras, como também aumentaram a frequência dos voos dos seus aviões espiões sobre o território mexicano, reunindo informações que muitos analistas consideram um possível primeiro passo para outras operações mais enérgicas.