Aborto: Decisão do Supremo dos EUA abala direitos a nível mundial. Será que pode “contagiar” outros países?
Depois de na passada sexta-feira o coletivo de juízes do Supremo Tribunal norte-americano ter tornado evidente que nenhum direito está absolutamente garantido para sempre, crescem as preocupações sobre que outros direitos podem ser revertidos.
Além de ter tornado ainda mais claras as profundas divisões que caracterizam a sociedade norte-americana, a polémica decisão do Supremo afastou também os Estados Unidos da liderança do progresso em matéria de direitos civis e humanos, avança o ‘La Vanguardia’.
Nancy Northup, responsável do Centro de Direitos Reprodutivos dos EUA, afirma que “as organizações internacionais e os tribunais em todo o mundo reconhecem que o aborto é um aspeto essencial dos direitos humanos fundamentais da mulheres e meninas”. Olhando para a decisão do Supremo norte-americano, Northup descreve-a como uma “bola de demolição” que foi lançada contra esse direito.
Dados dessa organização dão conta de que dezenas de países já passaram leis que despenalizam a prática do aborto, com outros a facilitarem o acesso a esse tipo de serviços. Contudo, quando a maior superpotência mundial deitou por terra uma lei que durante 49 anos permitiu às mulheres assumirem as rédeas sobre os seus corpos e sobre a sua saúde reprodutiva, os EUA juntam-se a um grupo de países que proíbem ou limitam fortemente o aborto: a Polónia, a Nicarágua e El Salvador.
Por ocasião da decisão do Supremo, o Gabinete da Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, disse que representava “um grande revés para os direitos das mulheres e da igualdade de género”. E acrescentou que “o acesso ao aborto seguro e legal está radicado na lei internacional e é o cerne da capacidade das mulheres e das meninas para fazerem as suas próprias decisões sobre os seus corpos e vidas”.
#USA: Supreme Court ruling is major setback for women’s rights & gender equality. Access to safe & legal abortion is rooted in intl human right law & at the core of women & girls’ ability to make their own choices about their bodies & lives: https://t.co/219G2fY3tU#RoeVsWade pic.twitter.com/jlxqgGCxfJ
— UN Human Rights (@UNHumanRights) June 24, 2022
Por sua vez, a Agência das NU para a Saúde Reprodutiva e Sexual (UNFPA) declarou que “limitar o acesso ao aborto não dissuade as pessoas de procurarem esse serviço, somente o torna mais mortal”, pois as mulheres terão que sujeitar-se a práticas realizadas em clínicas ilegais, onde os riscos de morte, infeção ou complicações serão mais elevados.
As the @UN sexual and reproductive health agency, @UNFPA advocates for the right of individuals to decide freely and responsibly the number, spacing and timing of their children.
Our statement on restrictions to access to abortion: https://t.co/AvQqxUDfCB#StandUp4HumanRights pic.twitter.com/G6qIIx94hg
— UNFPA (@UNFPA) June 24, 2022
Ainda na ótica das organizações internacionais, também o Diretor-Geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, confessou ter ficado “preocupado e desiludido com a reversão do Roe vs Wade”, o precedente legal que despenalizou o aborto nos EUA. “Reduz quer o acesso os direitos das mulheres e o seu acesso a cuidados de saúde”, escreveu Ghebreyesus.
I’m concerned and disappointed with the overturning of #RoeVsWade. It’s both reducing women’s rights and access to health care. https://t.co/pGuR79G8xr
— Tedros Adhanom Ghebreyesus (@DrTedros) June 24, 2022
As reações multiplicaram-se nas primeiras horas após ter sido conhecida a decisão, quer de oposição, quer de apoio.
Tendo em conta o estatuto internacional dos EUA no mundo, que atua como “farol” para muitos outros países, existe agora o risco real de governos de contornos mais conservadores encontrarem na decisão uma motivação acrescida para seguirem o exemplo.
No dia anterior, o Presidente brasileiro Jair Bolsonaro tinha já chocado a opinião pública mundial, ao ter condenado médicos por terem feito um aborto a uma menina de 11 anos que tinha engravidado depois de ter sido violada.
No dia seguinte à decisão do Supremo dos EUA, 25 de junho, o Chefe de Estado brasileiro publicou no Twitter uma imagem que mostra o Presidente a segurar um bebé, com o texto “Que Deus continue dando força e sabedoria para aqueles que protegem a inocência e o futuro de nossas crianças, no Brasil e no mundo”, no que se pode entender como uma referência ao que se passou em Washington na véspera.
– Que Deus continue dando força e sabedoria para aqueles que protegem a inocência e o futuro de nossas crianças, no Brasil e no mundo. Boa noite a todos! pic.twitter.com/2hqLULdeZA
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) June 25, 2022
Na Alemanha, a decisão dos EUA foi conhecida no mesmo dia em que os legisladores em Berlim acabaram com uma lei que proibia que os médicos transmitissem aos pacientes informações sobre serviços de aborto. No entanto, Beatrix von Storch, um membro destacado do partido ultraconservador AfD (Alternativa para a Alemanha) afirmou que a reversão do direito ao aborto nos EUA era “um sinal de esperança para a vida não-nascida que brilhará sobre todo o ocidente”.
Eine gute Entscheidung. Gerade heute! 😊 Der Oberste Gerichtshof setzt ein Signal der Hoffnung für das ungeborene Leben. Das strahlt auf den ganzen Westen. #219a https://t.co/ApbOf9gXON
— Beatrix von Storch (@Beatrix_vStorch) June 24, 2022
Tendo em conta o crescimento e fortalecimento dos movimentos políticos e sociais populistas conservadores na Europa, e também um pouco por todo o mundo, um “efeito de contágio” não poderá ser afastado da esfera do possível, pelo que outros governos podem interpretar a tomada de posição da Justiça norte-americana como o trilhar de um novo caminho em matéria de direitos de reprodução e saúde da mulher.