A luz solar pode curar doenças? Cientistas tentam descobrir o ‘Santo Graal da autoimunidade’
A americana Kathy Reagan Young foi diagnosticada em 2008 com esclerose múltipla (EM), uma doença terrível em que o próprio sistema imunitário do organismo ataca as bainhas que isolam os nervos, destruindo-os pouco a pouco. Atualmente, referiu a publicação ‘Scientific American’, Young é uma das primeiras pessoas nos EUA a testar a fototerapia UV como tratamento para a EM, mas pode estar na vanguarda de uma revolução na forma como pensamos sobre a luz e uma enorme classe de doenças.
As doenças autoimunes, como a esclerose múltipla e a diabetes tipo 1, ocorrem quando as nossas defesas naturais — o nosso sistema imunitário — se viram violentamente contra os nossos próprios corpos e órgãos. Estima-se que estas doenças afetem mais de 350 milhões de pessoas em todo o mundo. Os tratamentos têm sido ilusórios.
Evidências de vários estudos médicos mostram agora que a luz UV, a parte de maior energia do espectro solar que atinge a superfície da Terra, tem uma capacidade surpreendente de acalmar um sistema imunitário que está fora de controlo. Os novos estudos oferecem ‘insights’ interessantes de que a terapia UV também pode funcionar para outras doenças autoimunes, como a diabetes tipo 1, a artrite reumatoide, a doença de Crohn e a colite. Todas são mais comuns em pessoas que se expõem muito pouco ao sol, assim como doenças como o Alzheimer e as doenças cardiovasculares.
Agora, os cientistas esperam decifrar os caminhos pelos quais a luz UV faz com que o sistema imunitário recue do estado de alarme. Estão a monitorizar a forma como as moléculas na pele, como o ácido urocânico e o lumisterol — que podem afetar a atividade do sistema imunitário — respondem a um disparo de fotões, desencadeando uma cascata de sinais que chegam a todos os órgãos do corpo. Os defensores dizem que este trabalho pode levar a um medicamento de grande sucesso, um ‘Ozempic para a autoimunidade’.
“A luz UV acalma a inflamação na pele, no sistema nervoso, no pâncreas e no intestino. O seu potencial não é totalmente explorado”, referiu Prue Hart, investigadora da Instituto de Investigação Infantil da Austrália. Pode também resolver um mistério que incomoda os cientistas há mais de um século: porque é que as pessoas que vivem em ambientes com pouca luz têm taxas tão elevadas de doenças?
Acs células imunitárias da nossa pele evoluíram para andar numa corda bamba. Como a nossa principal interface com o mundo exterior, a pele é bombardeada com potenciais fatores de stress: calor, frio, feridas, picadas de insetos, micróbios misteriosos de todos os tipos. Durante o primeiro milhão de anos que os nossos antepassados não-símios passaram sob os céus tropicais de África, a radiação solar foi o stressor mais comum de todos. “É um desafio para o corpo”, diz Prue Hart, imunologista do Kids Research Institute Australia, que estuda os efeitos da luz solar na imunidade há mais de 30 anos. “É a maior agressividade ambiental que temos. Evoluímos para lidar com ela.”
Se o sistema imunitário reagisse a cada raio de sol com um ataque violento, diz Hart, teríamos vivido num estado constante de inflamação, assolados por erupções cutâneas, urticárias e distúrbios autoimunes cutâneos. Em vez disso, o sistema aprendeu a conter o fogo.
Durante mais de um século, os cientistas notaram que muitas doenças, especialmente condições autoimunes e cardiovasculares, seguem um gradiente de latitude. Quando são considerados outros fatores de confusão, como a dieta, o exercício e a socioeconomia, as taxas destas doenças aumentam com a latitude. Todos os tipos de causas foram sugeridas — clima, dieta, raios cósmicos, algo na água — mas nada se encaixa.
A doença com o gradiente de latitude mais dramático é a EM. As taxas de prevalência são próximas de zero perto do equador e aumentam em 3,64 casos em média por 100.000 pessoas por cada grau de latitude, atingindo bem mais de 100 casos por 100.000 pessoas no norte da Europa e na América do Norte. O gradiente existe em todo o mundo e tem vindo a fortalecer-se ao longo do tempo.
As implicações dos estudos vão muito para além da EM ou mesmo das doenças autoimunes. Nos últimos anos, os investigadores descobriram que muitas outras condições crónicas também têm um componente inflamatório. As doenças cardiovasculares são causadas em parte por células imunitárias que atacam e danificam as paredes dos vasos sanguíneos. A doença de Alzheimer está relacionada com uma inflamação ligeira e latente no cérebro. Acredita-se que a artrite, a asma, as alergias, a diabetes e até a depressão têm componentes inflamatórios. Há algo no estilo de vida moderno, em ambientes fechados e excessivamente higiénico que pode fazer com que o nosso sistema imunitário perca os seus níveis saudáveis.
Os efeitos da exposição solar também foram encontrados em algumas outras condições autoimunes, como a diabetes tipo 1, em que o sistema imunitário ataca o pâncreas, interrompendo a produção de insulina. A taxa desta doença é três vezes superior no sul da Austrália do que no norte. Nos EUA, a prevalência é menor nos bebés nascidos no outono, que foram gestados durante o verão.
Dada a consistência de provas, o que se deve fazer a esse respeito? Embora alguns cientistas tenham defendido o aumento da exposição solar para pessoas com elevado risco de doenças autoimunes, poucos profissionais de saúde se sentiriam confortáveis em recomendar um agente cancerígeno conhecido aos seus doentes. O ‘Santo Graal’, em termos de aceitação generalizada, seria descobrir o misterioso caminho molecular pelo qual a pele diz ao sistema imunitário para relaxar e depois transformá-lo num produto biológico — um medicamento isolado de organismos naturais.
“Não sabemos qual é a molécula de ouro; sabemos apenas que não é vitamina D”, apontou Hart. “Depois dá-se um passo atrás e aplica-se UV, o que dá à pele a hipótese de produzir o que quer que seja.”
O problema em encontrar “seja lá o que for” é que quando se dirige luz UV para a pele e se dá uma vista de olhos para ver o que produz, descobre-se uma farmacopeia microscópica. Além da vitamina D, a pele produz melatonina, serotonina, endorfinas, endocanabinóides, cortisol, oxitocina, leptina, óxido nítrico, ácido cis -urocânico, itaconato, lumisterol, taquisterol e uma dúzia de outros compostos semelhantes à vitamina D que ainda nem sequer têm nomes.
A maioria destas moléculas são hormonas ou neurotransmissores, o que não é surpresa. Embora muitas pessoas tendam a pensar na pele como nada mais do que uma barreira, é o maior órgão do corpo e um polo vital do sistema neuroendócrino, em constante conversa com o corpo e o cérebro sobre como ajustar o sistema para manter a saúde. É também um local importante para o sistema imunitário, repleto de células T que defendem o organismo — ou atacam o organismo, se estes ficarem descontrolados —, macrófagos, neutrófilos, citocinas, peptídeos antimicrobianos e outros agentes importantes.
Descobrir esta ‘equação’ é o próximo passo dos cientistas.