80% das praias entre Troia e Melides com acesso condicionado: Ferry por 50 euros e chapéus de sol até 200 afastam população local
A vasta frente atlântica entre Troia e Melides, no concelho de Grândola, pode parecer, à primeira vista, um paraíso aberto a todos. Mas quem tenta aceder às praias deste troço de 45 quilómetros descobre rapidamente os obstáculos. Segundo um levantamento feito no terreno pelo Expresso, 80% desta faixa costeira tem o acesso condicionado, com falta de caminhos públicos, estacionamento e sinalização. Para muitos, as praias são cada vez mais um privilégio reservado a quem pode pagar.
Um dos primeiros entraves é a travessia do Sado. O ferry entre Setúbal e Troia custa hoje €21 para viatura com condutor, mais €5,50 por passageiro. Em 20 anos, os preços quadruplicaram, e o número de passageiros caiu 57,6%. Ana Rodrigues, residente em Setúbal, diz ao Expresso que uma ida com os filhos até à Comporta pode chegar aos €50. “Quando era adolescente, ia a Troia com os meus amigos. Agora é quase impossível”, lamenta.
A cantora setubalense A Garota Não denuncia esta realidade na canção Ferry Gold, criticando a “privatização ordinária da península de Troia” e a destruição das dunas. Em entrevista ao podcast Posto Emissor, acusa ainda o turismo de luxo de impor uma “segregação” à população local. Em teoria, as praias são públicas por lei, mas, na prática, grande parte está rodeada por resorts com acessos difíceis ou inexistentes.
A situação não passou despercebida às autoridades locais. Em 2023, os presidentes das câmaras de Setúbal, Alcácer do Sal e Grândola pediram ao Governo que tornasse o acesso mais acessível, nomeadamente alargando a validade do passe Navegante às travessias do Sado. A Autoridade da Mobilidade e dos Transportes recomendou a renegociação da concessão para esse efeito. No entanto, nada foi concretizado. O passe mensal da Atlantic Ferries custa atualmente €99,30.
Questionado pelo Expresso, o presidente da Câmara de Grândola, António Figueira Mendes (PCP), recusou-se a dar entrevista. Disse não aceitar ser alvo de “instrumentalização jornalística” e invocou a sua “história de luta pela liberdade de imprensa” para justificar o silêncio. Já Luís Vital Alexandre, vereador da oposição e candidato do PS à autarquia, critica a “inação da câmara” e defende “um sistema de mobilidade com parques de estacionamento e discriminação positiva para os habitantes do concelho”.
A sul de Troia, entre o resort Pestana e o projeto “Na Praia” — este último da herdeira da Zara e com abertura prevista para 2026 —, as únicas entradas disponíveis para o areal são as dos próprios empreendimentos. A APA confirma que haverá um acesso público pedonal junto ao Pestana, mas, por agora, apenas os veículos de emergência podem utilizá-lo. De resto, a cerca de madeira do “Na Praia” estende-se por três quilómetros sem hipótese de estacionamento.
A aprovação de múltiplos projetos PIN (Potencial Interesse Nacional) desde 2002 levou à eliminação de 76% da Reserva Ecológica Nacional em Grândola. A associação ZERO classificou o processo como “um claro favorecimento de interesses privados”. O geógrafo Sérgio Barroso alerta que “os empreendimentos nunca deveriam ter sido licenciados sem garantir acessos públicos”, apelando às autoridades para corrigirem esta apropriação “de um bem público”.
Mais a sul, até à Comporta, não há empreendimentos, mas os acessos são igualmente precários. Estaciona-se nas bermas e caminha-se entre dunas e pinhais, o que fragiliza o ecossistema. A bióloga Maria Santos, da associação Dunas Livres, defende a criação de passadiços e transportes alternativos, para evitar a degradação da Reserva Botânica. “Perdemos uma luta inglória contra resorts de luxo. Os milhões dos PIN valeram mais do que os ecossistemas”, acusa.
Nas praias mais acessíveis, como Comporta, Carvalhal e Pego, os preços praticados pelas concessões são outro fator de exclusão. Uma sombra pode custar entre €70 e €200 por dia. Um simples hambúrguer num restaurante de praia ultrapassa os €20. Tudo somado, ir à praia entre Troia e Melides tornou-se um luxo fora do alcance da maioria dos portugueses — e os números comprovam-no: apenas 20% da costa tem acesso formal livre, segundo o Programa da Orla Costeira Espichel-Odeceixe.