0E2024 traz um dos maiores aumentos de IUC de sempre: fiscalista explica efeitos da decisão do Governo e contraria números de Medina

O Orçamento do Estado (OE) para 2024 tem sido alvo de intensas críticas, em particular a polémica subida do IUC (Imposto Único Automóvel), que em determinados casos pode superar os 170% (consulte as nossas simulações aqui). Para esmiuçar a proposta do Governo, contámos com a colaboração do Dr. Afonso Arnaldo, partner da área de Divisão de Impostos Indiretos e de Direitos Aduaneiros da Deloitte, que, em exclusivo para a ‘Executive Digest’, emprestou a sua visão e experiência para compreender as intenções do Executivo.

Este OE é positivo ou negativo para o bolso dos portugueses?

“É um OE que transfere alguma tributação – primeira nota, a receita fiscal sobe. A previsão do Governo é de 5%, derivado de vários efeitos, como a previsão de crescimento da economia, a inflação. O Governo refere que isso não implica necessariamente o crescimento da carga fiscal, ou seja, daquilo que é comparação da carga fiscal com o PIB.

Estes 5% são totalmente alicerçados nos impostos indiretos. Ou seja, a subida da receita de impostos diretos é 0%, basicamente, ao passo que nos indiretos atinge os 9%. Efetivamente, há um crescimento do peso dos impostos indiretos sobre a totalidade da receita fiscal em Portugal: atualmente, este peso ronda os 53% quando em 2023 foi de 51%.

Significa que se olharmos para o caso concreto do IRS, que o Governo tem anunciado ir sofrer uma redução da carga fiscal, estamos a fazer passar essa receita de um sistema (IRS), que é mais progressivo, para impostos ‘mais cegos’ naquilo que é a disponibilidade financeira das pessoas. Isto é, a justiça social que se consegue com IRS é menos conseguida do que a dos impostos indiretos.

Mas estes trazem vantagens: por exemplo, para o Estado, há mais ‘anestesia fiscal’, há menos noção do imposto que estou a pagar – se for ao supermercado e comprar um pão que me custa 1 euro, não sei quanto do IVA está neste valor. Por outro lado, há um efeito económico que pode ser positivo que é as pessoas terem maior disponibilidade de dinheiro na sua conta, que pode resultar por exemplo da redução do IRS, e ter tendência e facilidade para gastar se virem a conta mais recheada. Mas há menos justiça social”.

Este OE, em comparação com anteriores, diria que é mais visível a opção política para um aumento mais ‘camuflado’ dos impostos? Ou tem sido sempre assim?

“De há alguns anos a esta parte, os impostos indiretos têm tido alguma supremacia face aos diretos. Mas neste fica bastante mais visível esta opção porque o Governo propõe-se fazer alívio no IRS, com 0% de aumento. Não me recordo nos últimos anos de um OE com 0% de crescimento nos impostos diretos e todo o crescimento alavancado nos impostos indiretos. Normalmente há crescimento de ambos.”

A última grande subida dos impostos diretos foi nos tempos da troika. Este OE compara-se em termos de efeito?

Diria que não é tão brutal. Mas estamos numa situação em que fica mais visível a aposta nos impostos indiretos. Defendo que tem de haver equilíbrio. Mas são opções políticas, isto é política fiscal, que se está a balancear para se suportar um bocadinho mais no consumo do que aquilo que se suporta no rendimento.

O aumento do IUC tem sido bastante polémico. Por quê esta escolha do Governo?

“O IUC (um imposto indireto) tem um aumento grande e está na ordem do dia. Em termos percentuais, por exemplo, o IABA (imposto sobre o álcool, as00 bebidas alcoólicas e as bebidas adicionadas de açúcar ou outros edulcorantes) – e estou surpreendido de ainda não se ter começado a falar -, que tem uma base de partida baixa quando comparada com o IVA, tem um crescimento previsto pelo Governo de 37%. Já o IUC é de 20%.

O IUC teve dois movimentos importantes no passado que importa recordar: em 2007, quando foi criado, foi para substituir três impostos relativos a circulação – o imposto municipal sobre veículos (o selo), imposto de circulação e imposto de camionagem – que foram unificados no IUC. Ao mesmo tempo, o IA (Imposto Automóvel) foi substituído pelo ISV (Imposto sobre Veículos). Nesse momento, houve uma passagem de tributação do ISV para o IUV. Ou seja, baixou-se o peso da fiscalidade na compra do carro (no ISV) e aumentou-se a carga fiscal no IUC.

E foi por isso que se fez separação dos carros anteriores a 2007 e os posteriores. Os carros anteriores pagaram mais IA no momento da aquisição. Mas agora vamos aumentar o IUC apenas para os carros anteriores, o que transmite alguma injustiça fiscal. Afinal, estes veículos já pagaram mais imposto quando foram adquiridos do que os pós-2007.

Nessa altura, houve um incremento de receita do IUC grande. Em 2007, os outros impostos substituídos tiveram receitas de 219 milhões de euros, atualmente estamos acima dos 500 milhões com o IUC. Logo em 2008, 249 milhões, em 2012 400 milhões e por aí fora… Já o ISV desceu bastante após essa reforma, assim como o IA: no último ano pagou 1.221 milhões de euros e baixou em 2008 para 946 milhões. Houve uma grande quebra de receita, uma parte da qual passou a ser apanhada pelo IUC.

Em 2013, com a crise e entrada da troika, esse foi o ponto mais baixo de receita do ISV, só de 360 milhões. Deixaram de se vender carros novos. Nesse ano, o Governo teve um grande aumento brutal de impostos, incluindo no IUC. Passou-se a tributar mais a propriedade. Assim, se sou proprietário de um automóvel, tenho de pagar o imposto, mesmo que ele esteja na garagem. Veja bem: em 2012, a receita do IUC foi de 400 milhões, no ano seguinte, 528 milhões, um aumento de mais de 25% na receita.

Este aumento encerra um limite de 25 euros por ano, verdade, mas por cada ano que passa vai-se pagar mais. Um exemplo: um carro a gasolina, com 900 cm3, com 113 gramas de CO2 por km. Este carro paga atualmente 19,34 euros, com base no novo cálculo passa a pagar 97 euros. Assim, em 2024 paga 44 euros. Em 2025 passa a pagar 69. Em 2026, 94. E só em 2027 vai atingir os 97 euros. Aquela afirmação do ministro das Finanças – “são só dois euros por mês” – não é verdade. São dois euros no primeiro ano, quatro euros no segundo ano, seis euros em 2026 e os acertos em 2027 – tudo quando comparado com 2023.

Há outro ponto interessante: dizer-se que, como o primeiro-ministro, há uma relação entre a descida do IRS e o aumento do IUC. Em termos macro, aceita-se o argumento. Para as pessoas em concreto, é preciso ter cuidado. Cerca de 50% dos agregados em Portugal não pagam IRS porque não têm rendimentos suficientes. Ora, os carros onde vai haver os maiores aumentos do IUC – estamos a falar de 3 milhões de carros e 500 mil motocicletas -, pode-se inferir que os proprietários destas viaturas são pessoas com menos posses. Com certeza que se pudessem trocar de carro, trocavam, prefeririam ter um carro novo. Portanto, se são com menos posses, eventualmente não pagam IRS. Ou seja, o alívio do IRS não existe porque muitas delas não pagam e vão ser penalizadas agora pela posse do carro. A única realidade que lhes vai cair em cima é o aumento do IUC, não há compensação no IRS.

O Governo não pode dizer que não há um aumento de impostos neste OE?

“Temos de ter cuidado com a semântica. Vai haver um aumento da receita fiscal, mas o Governo insiste que é devido ao aumento da atividade económica, principalmente, o que não é totalmente verdade. Há uma parte da receita que não vem desse aumento, advém do efetivo aumento de impostos específicos, como é o caso do IABA, do IUC, do imposto do tabaco. É também o caso, que pouco se tem falado, do IVA zero, que vai terminar em janeiro e vai provocar uma inflação imediata nesses bens porque naturalmente os vendedores vão adicionar este IVA logo em janeiro.

No IVA, por exemplo, indica o OE, o aumento de receita que se prevê é de 8%, de 550 milhões de euros adicionais em relação a 2023 por via do regresso à tributação desses bens.

Em resumo: há um claro aumento de impostos indiretos, há uma redução dos impostos diretos, em concreto no IRS. Tudo somado, a receita fiscal vai subir 5% (descontando contribuições sociais). Em 2023 previu-se 64 mil milhões, em 2024, 67 mil milhões – há um crescimento de 3,2 mil milhões na receita fiscal. Mas são contas que só no final do ano poderemos fazer para chegar a uma conclusão.”

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