Nem a Rússia nem a China querem que a guerra na Ucrânia acabe…mas por razões diferentes

A China é atualmente o mercado mais importante da Rússia, mas Putin não está apenas a cortejar Xi Jinping à procura de apoio económico: o líder russo está também a estabelecer uma relação estratégica

Francisco Laranjeira
Maio 19, 2024
11:00

Vladimir Putin cumpriu uma visita à China e fez-se acompanhar por uma grande delegação comercial. Esta foi a primeira viagem do presidente russo ao exterior depois da sua reeleição para um quinto mandato, e dias depois de ter nomeado um economista civil para conduzir o Ministério da Defesa da Rússia, num claro sinal de que a economia do seu país em tempos de guerra é para manter.

A China é atualmente o mercado mais importante da Rússia, mas Putin não está apenas a cortejar Xi Jinping à procura de apoio económico: o líder russo está também a estabelecer uma relação estratégica.

“Os dois Estados são aliados não porque partilhem qualquer afinidade cultural ou ideológica específica; pelo contrário, uniram-se devido ao velho ditado de que ‘o inimigo do meu inimigo é meu amigo'”, salienta Chels Michta, do Centro de Análise de Política Europeia, citado pela publicação ‘Business Insider’. “A parceria deles é em grande parte prática – ancorada em princípios de poder duro, desprovidos de pretensão ou postura ideológica”, acrescenta.

“Neste alinhamento da ‘realpolitik’, ambos os partidos acreditam que têm mais a ganhar se continuarem a trabalhar juntos do que correm o risco de perder”, assume.

Putin precisa de equilibrar o domínio da China sobre a economia da Rússia

A economia da Rússia manteve-se resiliente perante mais de dois anos de sanções ocidentais em grande parte devido aos incentivos provenientes dos subsídios estatais e da produção durante a guerra. Houve um economista que chegou ao ponto de dizer que a economia estava tão impulsionada pela guerra que não se podia dar ao luxo de ganhar ou perder no conflito na Ucrânia.

No entanto, a Rússia também se tornou cada vez mais dependente da China desde que iniciou a guerra na Ucrânia. O comércio bilateral atingiu um nível recorde de 240 mil milhões de dólares no ano passado – um salto de 26% em relação aos 190 mil milhões de dólares do ano anterior. “É justo dizer que sem o apoio económico da China, a Rússia não teria sido capaz de enfrentar as sanções económicas que lhe foram impostas pelo Ocidente”, escreve Michta.

Porém, a especialista indica que o ‘boom’ no comércio serviu mais os interesses da China do que os da Rússia, colocando Moscovo numa posição cada vez mais subordinada. Um exemplo: a Rússia agora “exporta matérias-primas para a China, enquanto a China envia produtos acabados, especialmente automóveis, para a Rússia – estes últimos à custa da indústria automobilística local da Rússia”.

Um dos pontos chave da agenda de Putin na China foi conseguir que Xi Jinping apoiasse uma proposta de gasoduto de gás natural da Sibéria para a China, uma vez que a Rússia perdeu o seu mercado na Europa devido às sanções.

“Ao vender grandes volumes de gás barato à China, a Rússia pode potencialmente vincular Pequim a uma aliança geopolítica mais estreita”, escreveram analistas do Centro de Política Energética Global da Universidade de Columbia.

“Convencer a China a comprometer-se com um projeto tão grande durante a guerra seria um golpe geopolítico para Moscovo, demonstrando ao Ocidente e ao Sul Global que é capaz de aprofundar a sua relação energética com a China apesar da guerra”, acrescentaram os analistas energéticos.

Mas a China não precisa realmente de mais gás antes de meados da década de 2030, por isso o tempo está do lado de Pequim.

A China diz que quer a paz, mas tem mais a ganhar com a continuação da guerra

Pequim apelou à paz na Ucrânia e apresentou uma proposta – que alguns analistas consideram vaga – para esse fim no ano passado. No entanto, de acordo com diversos analistas, a China tem mais a ganhar com a continuação da guerra. “O apoio contínuo da América a Kiev – e, portanto, a incapacidade da Rússia de assegurar os seus ganhos num curto espaço de tempo – é na verdade do interesse de Pequim”, escreve Michta.

“O fim da ajuda dos EUA funcionaria contra a China, uma vez que a implosão da Ucrânia interromperia – ou pelo menos abrandaria – o deslizamento de Moscovo em direção a uma dependência semelhante a um vassalo de Pequim”, acrescenta, destacando que uma Rússia cada vez mais dependente poderá ser capaz de oferecer a Pequim a tecnologia militar fundamental que desenvolveu na era pós-soviética, ajudando assim a China a fazer grandes progressos no setor.

Apesar das suas tentativas de se unirem, a relação cada vez mais estreita entre a Rússia e a China é um problema para o Ocidente. “Atualmente, uma unidade de propósito entre as potências autocráticas criou a relação mais próxima em décadas. A China e a Rússia estão a forjar uma parceria que lembra cada vez mais uma aliança de grande poder”, escreve Michta.

Em particular, Pequim tem como objetivo ir além da Rússia – que está mais interessada em mudar as relações de poder na Europa. “Pequim está a prosseguir um projeto muito mais ambicioso que visa mudar os fundamentos da ordem global”, conclui Michta, “acabando de uma vez por todas com a era do domínio ocidental mundial”.

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