
Os consumidores estão a ganhar o direito a reparar os seus produtos
Nos últimos anos, os fornecedores de bens com software têm utilizado cada vez mais o controlo digital dos seus produtos para obter valor pós- -venda adicional, por exemplo, quando exigem subscrições para manter os aparelhos operacionais, ou quando limitam remotamente a capacidade de os proprietários repararem os produtos quando estes se avariam.
Substituiu o ecrã partido do seu smartphone por um ecrã não certificado? O fabricante desactivou o aparelho. Quer continuar a utilizar as funcionalidades do berço inteligente que comprou para o seu recém-nascido? Terá de subscrever um plano de serviço mensal. Os consumidores pagam por bens tecnologicamente avançados, mas nem sempre usufruem do que a maioria considera ser o pleno direito de propriedade. E estão cada vez mais descontentes com isso.
A utilização de software pela Deere & Co. nos seus tractores para aumentar as receitas pós-venda conquistou o respeito de estrategas empresariais. Mas, em Janeiro, o seu controlo digital da assistência e das reparações deu origem a uma acção judicial intentada pela Comissão Federal do Comércio dos EUA e pelos procuradores-gerais de dois estados fortemente agrícolas, Illinois e Minnesota. O processo alega que a empresa limitou ilegalmente a capacidade dos agricultores e dos prestadores de serviços independentes de repararem equipamentos Deere.
O caso da Deere & Co. mostra que o panorama jurídico mudou. Os consumidores e os seus defensores, que estão a reafirmar os direitos tradicionais de propriedade, estão por detrás de nova legislação que garante o direito de reparar os seus próprios dispositivos. Embora as regras variem consoante as jurisdições, normalmente exigem que as empresas permitam que os proprietários dos produtos efectuem modificações, personalizações ou reparações nos próprios produtos, ou numa oficina de reparação independente, sem consequências negativas. As leis de direito à reparação foram aprovadas nos estados de Califórnia, Colorado, Maine, Massachusetts, Minnesota, Nova Iorque e Oregon, e existem actualmente projectos de lei em 30 legislaturas estatais. A União Europeia adoptou um novo conjunto de regras de direito à reparação em 2024.
O panorama regulamentar emergente representa uma oportunidade para os fabricantes de tecnologia redefinirem a sua relação com os consumidores enquanto fornecedores de serviços preferenciais. Em vez de utilizarem o tipo de bloqueios tecnológicos e termos restritivos que encontrámos no nosso estudo sobre as manobras da Apple no mercado de serviços do iPhone (publicado em 2024 na “MIS Quarterly”), as empresas devem abordar três desafios.
1 Desenvolver um modelo de negócio centrado nos serviços.
Muitos fabricantes criam os seus modelos de negócio em torno da venda de produtos — e as suas estratégias para extrair receitas pós-venda são muitas vezes concebidas para proteger o seu controlo sobre o produto, e não para fomentar a sua relação com os clientes.
As empresas com um modelo de negócio centrado nos serviços colocam a experiência do cliente no centro das atenções e concentram-se em soluções que satisfazem as necessidades dos seus consumidores de tecnologia, não só antes como também depois da venda do produto. A unidade Geek Squad da Best Buy, por exemplo, diagnostica e repara todo o tipo de produtos electrónicos de consumo e trata o serviço como um ponto de contacto com o cliente e como uma oportunidade de aprofundar a relação muito depois do ponto de venda. A proximidade com o cliente permite à empresa compreender as suas exigências e necessidades, o que a posiciona bem para oferecer serviços adicionais de pós-venda que enriquecem as experiências dos clientes com os produtos.
As empresas que obtiveram receitas de serviços ao prenderem os clientes a esquemas rígidos de serviço ou manutenção têm de reformular o serviço como um negócio competitivo, porque este irá tornar-se cada vez mais competitivo à medida que os regulamentos derrubarem os obstáculos à entrada. Isto significa colocar as soluções para os clientes, e não as vendas ou o controlo dos produtos, no centro do negócio.
2 Repensar a concepção dos produtos tendo em conta a reparação.
Os fabricantes terão de avaliar a possibilidade de reparação dos seus produtos. Os seus dispositivos são construídos com base em componentes e estruturas proprietárias, ou baseiam-se em normas partilhadas e componentes facilmente acessíveis? Que características do produto limitam actualmente os clientes, ou os fornecedores de serviços terceiros, de efectuarem reparações ou manutenção? A Apple, por exemplo, concebeu o seu iPhone com base em hardware (como os conectores Apple Lightning) e software (por exemplo, o Apple iOS) proprietários, o que significa que a empresa controla o fornecimento e a modificação destes componentes. Os telemóveis Samsung, por outro lado, baseiam-se na arquitectura aberta do Android para smartphones da Google, facilitando a clientes e terceiros a inclusão de conteúdos, peças ou aplicações de terceiros nos dispositivos.
Os fabricantes de produtos optaram frequentemente pela via da propriedade para manterem o controlo da experiência do produto, mas terão de ceder algum controlo para permitir que os proprietários dos produtos exerçam os direitos de reparação. Em particular, alguma legislação nova estipula que as interfaces devem ser normalizadas e abertas, como o requisito da UE de portas de carregamento USB-C em todos os componentes de tecnologia móvel nos produtos.
O impulso legislativo para uma maior normalização e possibilidade de reparação exigirá que os fornecedores de produtos encontrem novas formas económicas de redesenhar os seus produtos. Uma estratégia poderia envolver a formação de alianças entre concorrentes tradicionais. A Power-for-All Alliance, por exemplo, inclui vários dos maiores fabricantes de ferramentas eléctricas e de produtos de jardinagem num esforço conjunto para criar uma plataforma de baterias normalizada entre diferentes marcas, o que significa que os utilizadores podem reutilizar e reparar de forma mais fácil e conveniente as baterias de várias ferramentas e dispositivos, enquanto os fabricantes beneficiam da normalização e da consolidação do desenvolvimento de produtos e dos serviços pós-venda.
3 Incorporar a análise nos produtos para obter uma vantagem nos serviços.
A promessa implícita das ofertas de serviços de um fabricante original é que a empresa conhece o produto melhor do que ninguém. Com a análise directamente incorporada nos produtos para monitorizar o seu desempenho, os fabricantes podem cumprir essa promessa, por exemplo, diagnosticando problemas de manutenção antes de um cliente sofrer uma avaria no produto. Uma notificação de cortesia do fabricante de que um componente se aproxima do fim da vida útil pode incluir um aviso para os clientes marcarem uma reunião de serviço e manterem essa receita adicional dentro da empresa.
A análise do produto em utilização também fornece aos fabricantes informações cruciais sobre os padrões de comportamento dos utilizadores e permite-lhes monitorizar as tendências de saúde dos produtos em toda a base instalada. Esses dados podem informar as previsões sobre a procura futura de manutenção, reparação ou substituição de produtos e ajudar os fabricantes a organizar as ofertas de serviços para satisfazerem as necessidades actuais.
A proliferação da legislação sobre o direito à reparação irá alterar a forma como as empresas tecnológicas competem pelos serviços no mercado pós-venda. Capacitar os clientes, tornando os produtos reparáveis e integrando a análise nos próprios produtos, permitirá aos fabricantes de tecnologia integrar a centralidade do serviço nos seus modelos de negócio.
Artigo publicado na Revista Executive Digest n.º 229 de Abril de 2025