Faz esta quinta-feira um ano desde a promulgação, por Marcelo Rebelo de Sousa, do decreto sobre a eutanásia, quatro dias depois de o Parlamento ter confirmado e enviar para o Palácio de Belém para promulgação.
“A Assembleia da República confirmou no passado dia 12 de maio, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, a nova versão do diploma sobre a morte medicamente assistida, pelo que o Presidente da República promulgou o Decreto n.º 43/XV, da Assembleia da República”, refere a nota da Presidência da República.
No Parlamento, o decreto obteve 129 votos a favor, da maioria dos deputados do PS, das bancadas da Iniciativa Liberal e do Bloco de Esquerda e dos deputados únicos de PAN e Livre, 81 votos contra, da maioria dos deputados do PSD e as bancadas do Chega e do PCP – houve um deputado social-democrata que se absteve.
Um ano volvido, a lei continua por ser aplicada. Porquê? A mudança de Governo
O diploma estabelecia que a regulamentação deveria ser aprovada no prazo de 90 dias para que a despenalização da morte medicamente assistida entrasse em vigor 30 dias depois.
Por regulamentar estão duas questões: estabelecer o modelo de registo clínico dos pedidos de morte medicamente assistida e o modelo de relatório médico final. Falta também perceber como é que vai ser criada a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida.
O Governo do PS decidiu não avançar com a regulamentação da lei da morte medicamente assistida, deixando o futuro da lei nas mãos do Governo que resultasse das eleições antecipadas de 10 de março.
De acordo com o Ministério da Saúde, então tutelado por Manuel Pizarro, “o processo de regulamentação da lei está em desenvolvimento e será parte integrante do dossier de transição”. O ministro da Saúde justificou a decisão com a “complexidade” do processo. “A regulamentação não é isenta de complexidade nem da necessidade de audições e de debate”, explicou Manuel Pizarro, “Seria um erro regulamentar à pressa uma lei, que, sendo muito importante, é também muito delicada”, indicou, confirmando que “o processo vai ter mesmo de esperar pelo próximo ciclo político”.
O que fará o novo Governo?
A 2 de novembro último, mais de 70% da bancada do PSD entregou, no Tribunal Constitucional (TC) um pedido de fiscalização sucessiva da lei que despenaliza a eutanásia, num requerimento subscrito por 56 deputados. No pedido em que se apelou à “prioridade e urgência” dos juízes do Palácio Ratton constou a assinatura de Joaquim Miranda Sarmento, ex-líder parlamentar do PSD e atual ministro das Finanças.
O objeto principal do pedido diz respeito à inconstitucionalidade da própria regulação legal da eutanásia, “com base no princípio da inviolabilidade da vida humana e na inexistência de um direito fundamental à morte autodeterminada”.
Para os subscritores, a regulação “provoca uma desvalorização implícita da dignidade dos mais frágeis na sociedade (pessoas doentes, idosas e com deficiência), e uma degradação das funções do sistema de saúde e dos seus profissionais, especialmente quando se institucionaliza uma nova prestação a cargo do Estado e de um novo procedimento administrativo para a satisfazer”.
Na campanha eleitoral, o programa da AD não fez referência à eutanásia. De acordo com Luís Montenegro, presidente do PSD, “vamos aguardar a pronúncia do Tribunal Constitucional. Nesta altura sim”, referindo ainda que era uma “posição que é importante para termos segurança jurídica”.
No entanto, importa recordar que Luís Montenegro, em abril do ano passado, defendeu que o Parlamento devia levar “um texto legislativo consolidado a referendo” sobre a eutanásia, criticando ” a pressa ofegante” dos partidos que apresentaram projetos para despenalizar esta prática.
Contactado pela ‘Executive Digest’, o Ministério da Saúde mostrou-se indisponível para comentar o assunto.
No entanto, durante a campanha – a 13 de março último -, Miguel Guimarães deixou ‘pistas’: o antigo bastonário da Ordem dos Médicos admitiu propor, no novo Parlamento, a revogação da lei da eutanásia. “É uma situação a considerar”, explicou então o futuro deputado eleito pela AD.
“Teremos, obviamente, de aguardar pelo que o Tribunal Constitucional vai dizer”, referiu, reconhecendo que “continuamos a ter uma lei em que existe dificuldade de regulamentação por vários aspetos. E é claro que isto pode ter de voltar ao Parlamento. Basta que seja agendado por algum dos partidos políticos”. Questionado sobre se poderá ser o grupo parlamentar da AD a suscitar a revogação da lei, o ex-bastonário limitou-se a dizer que “só o presidente do partido poderá responder”.
No mesmo dia, a Provedora de Justiça havia apresentado ao Tribunal Constitucional um pedido – o requerimento de Maria Lúcia Amaral pede “a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas constantes da Lei nº 22/2023, de 25 de maio, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal”.
O CDS-PP havia requerido, em junho, à Provedora da Justiça que solicitasse, junto do TC, a fiscalização sucessiva do decreto. Para os democratas cristãos, a decisão é óbvia: o texto do Parlamento “viabilizava o homicídio a pedido”.
“O CDS é contra a eutanásia. Para nós, o sofrimento desacompanhado e sem tratamento nunca será opção”, referiu o partido, defendendo que “a prioridade não é viabilizar a morte a pedido, mas sim investir em equipas preparadas, nos profissionais de saúde devidamente qualificados para intervir ativamente no sofrimento e oferecer vidas devidamente acompanhadas aos nossos concidadãos”, lembrando: “Milhares de doentes frágeis e vulneráveis não têm acesso aos cuidados paliativos que necessitam.”
Certos setores da sociedade civil também reagiram: a Federação Portuguesa pela Vida, liderada por José Maria Seabra Duque, sustenta que a lei “só está viva por obstinação legislativa”. “Espero que o novo Parlamento revogue esta lei”, afirma. A Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) quer “uma discussão no novo Parlamento” sobre a revogação da lei da eutanásia, salienta a presidente Catarina Pazes, em declarações à rádio ‘Renascença’, garantindo que ainda existem muitos portugueses “sem acesso a cuidados de saúde de qualidade” e que, dessa forma, “não há condições para uma escolha livre e autónoma”.
O que prevê o novo texto de lei aprovado em Portugal?
A morte medicamente assistida (não punível) ocorre por decisão da própria pessoa, maior de idade, de nacionalidade portuguesa ou a residir legalmente em território nacional. Essa pessoa deve estar em situação do sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável. E pode praticá-la ou ser ajudada por profissionais de saúde.
Lei da eutanásia esclarece e clarifica conceitos
A lei esclarece estes conceitos:
sofrimento de grande intensidade – aquele que decorre de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema (com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa);
lesão definitiva de gravidade extrema – trata-se de uma lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza (ou elevada probabilidade) de que essas limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de uma melhoria significativa;
doença grave e incurável – doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que provoca sofrimento de grande intensidade.
A morte medicamente assistida só pode ocorrer por umas das seguintes formas:
– suicídio medicamente assistido – quando o doente autoadministra fármacos letais, embora sob supervisão médica;
– eutanásia – quando os fármacos letais são administrados pelo médico ou profissional de saúde habilitado para esse efeito.
Contudo, importa referir que a morte medicamente assistida só pode ocorrer através da eutanásia desde que o suicídio medicamente assistido não seja possível de realizar devido a incapacidade física do doente. Este não tem o direito de escolha entre o suicídio medicamente assistido ou a eutanásia, ao contrário do que resultava de uma proposta anterior, que, por via da interpretação, podia permitir essa possibilidade.
Como é feito o procedimento?
O pedido é feito por escrito pelo doente e dirigido a um médico orientador escolhido pelo requerente. Esse médico tem a seu cargo coordenar toda a informação e assistência ao doente, ou seja, é o interlocutor principal. E emite, no prazo de 20 dias úteis, um parecer fundamentado relativo aos respetivos requisitos. O médico orientador presta também informação e esclarecimento sobre a situação clínica do doente, os tratamentos aplicáveis ao seu caso, nomeadamente na área dos cuidados paliativos e respetivo prognóstico. Se a decisão do doente se mantiver, deve ser registada por escrito.
Se o parecer do médico orientador não for favorável à morte medicamente assistida, o procedimento é cancelado e dado por encerrado. Mas poderá ser reiniciado mediante novo pedido de abertura. Por outro lado, se o parecer do médico orientador for favorável, este procede à consulta de outro médico (especialista na doença), que confirma (ou não), entre outras situações previstas na lei, o diagnóstico da situação clínica ou a natureza grave e incurável da doença. Refira-se que o parecer do médico especialista deve ser realizado no prazo de 15 dias úteis.
Se o parecer do médico especialista for favorável, o doente é informado de tal facto pelo médico orientador, que confirma novamente se a vontade do doente se mantém.
Durante o processo, é obrigatório o parecer de um médico especialista em psiquiatria nas seguintes situações:
– caso subsistam dúvidas sobre a capacidade do doente para solicitar a morte medicamente assistida;
– face à possibilidade de perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua tomada de decisões.
Se o médico especialista em psiquiatria confirmar algumas destas situações, o procedimento é cancelado.
Ainda assim, se os pareceres forem favoráveis, o médico orientador remete cópia do registo clínico especial para a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida, solicitando parecer sobre cumprimento do procedimento. Se for favorável, o médico orientador informa o doente, confirmando uma vez mais se é essa a sua vontade.
Como é concretizado o procedimento?
O médico orientador combina o dia, a hora, o local (escolhido pelo doente; pode ser nos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde ou no setor privado devidamente licenciado) e o método a utilizar. Deve ainda informar e esclarecer o doente sobre os métodos disponíveis para realizar a morte medicamente assistida. Por exemplo, a autoadministração de fármacos letais pelo doente ou a administração pelo médico (ou profissional de saúde habilitado para o efeito, embora sob supervisão médica) quando o doente esteja impossibilitado de o fazer por a incapacidade física. Nesta matéria, a lei não esclarece a quem compete atestar a incapacidade física do doente ou quem assegura a supervisão médica durante o ato. Aguarda-se a regulamentação da lei para confirmar se estas questões são abrangidas.
Se o doente ficar inconsciente antes da data marcada para a realização do procedimento, este é interrompido e não se realiza, exceto se recuperar a consciência e mantiver a decisão.













