Entre 2019 e 2024, foram sinalizadas 2211 presumíveis vítimas de tráfico de seres humanos em Portugal, mas apenas 11 pessoas receberam qualquer tipo de indemnização pelo sofrimento e exploração a que foram sujeitas. Os dados, citados pelo Público, constam de uma avaliação do Grupo de Especialistas sobre a Ação contra o Tráfico de Seres Humanos (GRETA), que esteve em Portugal entre 14 e 18 de julho para avaliar a aplicação da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Seres Humanos.
Apesar de as vítimas chegarem de diferentes partes do mundo — como Moçambique, Índia, Roménia ou Nepal — a maioria acaba por ser canalizada para a agricultura sazonal, muitas vezes vivendo em condições indignas, sem acesso a higiene, alimentação adequada ou documentos. A promessa de um salário capaz de garantir uma vida melhor rapidamente se transforma em exploração laboral ou sexual, em que os trabalhadores são mantidos sob controlo, com salários cativados por falsas dívidas impostas pelos empregadores.
O Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH) revelou ao GRETA que, entre 2004 e 2024, apenas 25 vítimas pediram uma indemnização, sendo que 11 viram os seus pedidos aprovados. Sete eram mulheres, quatro das quais vítimas de exploração sexual. Uma das histórias mais chocantes envolveu uma jovem vendida pela mãe, depois devolvida, e novamente entregue a uma família residente em Portugal, onde foi abusada sexualmente por pai e filho, até engravidar. O caso só foi identificado quando a jovem procurou cuidados médicos para o parto.
Em nenhum dos casos o montante atribuído partiu diretamente dos exploradores. As indemnizações, todas pagas pelo Estado, variaram entre 15 mil e 34.500 euros, com uma média de 22.300 euros por vítima. A falta de responsabilização direta dos traficantes deve-se, segundo o OTSH, à incapacidade económica dos criminosos ou à ausência de bens arrestados durante o processo judicial.
O relatório denuncia ainda que muitos casos acabam requalificados nos tribunais como auxílio à imigração ilegal ou arquivados por falta de provas, o que impede o acesso das vítimas à indemnização estatal. A lei portuguesa (Lei n.º 104/2009) exige uma condenação por tráfico de seres humanos para que seja possível aceder ao apoio financeiro. Esta exigência, segundo o OTSH, constitui um grave obstáculo à reparação das vítimas. O organismo já enviou uma proposta ao Ministério da Justiça para alterar a legislação de forma a permitir um acesso mais justo e célere a estas compensações.
Os dados revelam também um retrato devastador: entre as 1161 vítimas analisadas com maior detalhe, 868 são homens e 993 são adultos, oriundos de 57 nacionalidades, com destaque para a Índia, Marrocos, Moldávia, Brasil e Nepal. Muitas destas pessoas viviam já em Portugal quando foram recrutadas, mas outras vieram aliciadas por falsas promessas de legalização e emprego, sendo depois instaladas em zonas agrícolas do Alentejo ou Centro, onde a fiscalização é quase impossível.
O tipo de exploração mais frequente é o trabalho forçado, com 910 dos 1161 casos, seguido de exploração sexual (65 casos), tráfico para adoção ilegal (12 casos) e mendicidade forçada (21 casos). O relatório descreve vítimas sujeitas a ameaças, agressões, servidão por dívida e descontos abusivos no salário, além de viverem sem acesso a água potável, eletricidade ou assistência médica.
O GRETA já havia alertado no relatório de 2023 para a falta de processos judiciais e condenações face ao número de vítimas. Voltou agora a instar Portugal a garantir o congelamento e arresto de bens, a melhorar o apoio jurídico às vítimas e a promover formação especializada a magistrados e juízes. O objetivo: garantir justiça e indemnização às vítimas, rompendo com o ciclo de impunidade que tem marcado a luta contra o tráfico de seres humanos no país.














