Com o prolongamento da guerra em Gaza e a crescente indignação internacional perante a catástrofe humanitária que se vive no território, a discussão sobre o reconhecimento do Estado da Palestina voltou a ganhar força nos fóruns diplomáticos. França, Reino Unido e Canadá são os mais recentes países a anunciar a intenção de reconhecer oficialmente a Palestina como Estado, juntando-se a uma lista que já conta com 147 países. Portugal, por sua vez, admite fazê-lo em breve, integrando uma coligação de países que considera o reconhecimento como um passo essencial para uma solução política de dois Estados.
O tema é complexo, envolve dimensões jurídicas, políticas, históricas e humanitárias e continua a suscitar divisões, tanto nas esferas governamentais como na opinião pública. Afinal, o que significa reconhecer o Estado da Palestina? Que implicações tem essa decisão? E que papel poderá ter Portugal neste processo? Explicamos tudo, ponto por ponto.
O que é necessário para que exista um Estado?
De acordo com a Convenção de Montevideu, de 1933, um Estado deve preencher quatro critérios básicos: ter uma população permanente, um território definido, um governo e a capacidade de estabelecer relações com outros Estados.
A Palestina cumpre alguns destes critérios de forma inequívoca: tem uma população de vários milhões de pessoas, conta com missões diplomáticas em dezenas de países e participa em eventos internacionais, como os Jogos Olímpicos. Contudo, a inexistência de fronteiras reconhecidas internacionalmente, de uma capital formal, de um exército e de controlo efetivo sobre todo o território colocam a sua existência como Estado numa zona cinzenta do direito internacional.
Quem governa atualmente os territórios palestinianos?
A governação palestiniana está fragmentada. A Cisjordânia é parcialmente administrada pela Autoridade Palestiniana, criada após os Acordos de Oslo nos anos 1990, sob o patrocínio da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). No entanto, a presença militar israelita continua a limitar severamente o controlo palestiniano sobre o território.
Na Faixa de Gaza, o controlo é exercido pelo Hamas, considerado uma organização terrorista por Israel, União Europeia e Estados Unidos. Gaza enfrenta uma guerra devastadora desde outubro de 2023 e uma situação humanitária catastrófica, com elevadas taxas de mortalidade, fome generalizada e destruição em larga escala.
Quantos países reconhecem o Estado da Palestina?
Atualmente, 147 dos 193 Estados-membros das Nações Unidas reconhecem oficialmente o Estado da Palestina. A Palestina é também membro observador permanente da ONU, o que lhe permite participar em reuniões e apresentar propostas, mas sem direito de voto.
Com os anúncios recentes de França, Reino Unido e Canadá, que deverão oficializar o reconhecimento em setembro de 2025 durante a Assembleia Geral da ONU, a Palestina contará com o apoio de quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas — China, Rússia, França e Reino Unido. Apenas os Estados Unidos, tradicional aliado de Israel, continuam a resistir a esse passo.
O que significa reconhecer um Estado palestiniano?
O reconhecimento de um Estado é, acima de tudo, um ato político, ainda que baseado em fundamentos jurídicos. Pode ser interpretado como um “voto de confiança”, segundo a jurista Zinaida Miller, da Northeastern University, citada pelo The New York Times. Ou seja, mesmo que faltem alguns dos critérios técnicos, o reconhecimento pode ser uma forma de afirmar que esse Estado tem o direito — ou deve ter condições — para existir plenamente.
Na prática, este gesto traduz-se geralmente no estabelecimento de relações diplomáticas formais com a Autoridade Palestiniana. Mas vai mais além: implica aceitar o direito dos palestinianos à autodeterminação, rejeitar ações israelitas que minem esse direito e, em muitos casos, rever a política externa em relação a Israel.
O jurista Ardi Imseis, professor na Queen’s University, no Canadá, afirma que este passo pode levar a “uma revisão completa das relações bilaterais com Israel”. Isso incluiria evitar relações comerciais com colonatos ilegais ou garantir que acordos não violam os direitos palestinianos. O reconhecimento não obriga, contudo, ao corte de laços com Israel, mas exige maior coerência diplomática e ética.
O reconhecimento pode ajudar a alcançar a paz?
A ideia de uma solução de dois Estados — Israel e Palestina coexistindo lado a lado, com fronteiras seguras e reconhecidas — é há décadas o modelo mais amplamente defendido pela comunidade internacional. Mas os sucessivos governos israelitas, especialmente o atual executivo liderado por Benjamin Netanyahu, têm mostrado forte oposição a essa solução, promovendo a expansão de colonatos e mantendo a ocupação militar.
Para alguns analistas, como Paul Reichler, advogado e especialista em direito internacional, “a única solução são dois Estados”, conforme previsto pelo direito internacional e por resoluções da ONU. Nesse contexto, o reconhecimento é um “pequeno passo” que reforça esse objetivo e a legitimidade internacional da Palestina.
Outros, no entanto, consideram o gesto insuficiente. Os analistas Hussein Agha e Robert Malley, num artigo no The Guardian, afirmam que “para os palestinianos, o dia seguinte ao reconhecimento será igual ao dia anterior”: bombardeamentos, fome e deslocações forçadas continuarão. Pior ainda, argumentam, o reconhecimento pode permitir que os governos ocidentais se sintam “aliviados” de qualquer obrigação de pressionar verdadeiramente Israel, desviando a atenção da violência sobre o terreno.
Porque é que os países estão a reconhecer a Palestina agora?
A mudança de posição de vários países ocorre num momento de crescente indignação pública com a situação em Gaza, onde mais de 30 mil pessoas terão morrido desde outubro de 2023. A entrada de ajuda humanitária tem sido sistematicamente bloqueada por Israel, segundo a ONU, o que levou à denúncia de uma crise de fome em larga escala.
O ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, David Lammy, destacou recentemente na ONU que o Reino Unido tem uma responsabilidade histórica na região, recordando a Declaração Balfour de 1917, que apoiava a criação de um lar nacional para o povo judeu na Palestina, mas também prometia não prejudicar os direitos das populações não judaicas — uma promessa que, segundo muitos, nunca foi cumprida.
A pressão interna também aumentou. No Reino Unido, por exemplo, vários deputados exigiram ao Governo que reconheça rapidamente a Palestina, “enquanto ainda há um Estado palestiniano para reconhecer”, como afirmou Wes Streeting, secretário da Saúde.
Portugal vai reconhecer o Estado da Palestina?
Portugal é um dos 15 países que subscreveram uma declaração conjunta, esta semana em Nova Iorque, manifestando a intenção de reconhecer o Estado da Palestina como “um passo essencial” para a paz. A declaração, divulgada após uma conferência internacional sobre a solução dos dois Estados, foi assinada por Portugal, França, Finlândia, Luxemburgo, Irlanda, Noruega, Islândia, Espanha, Andorra, Malta, San Marino, Eslovénia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
Entre estes países, Espanha, Irlanda, Noruega e Eslovénia já reconheceram oficialmente a Palestina em 2024. França e Reino Unido prometeram fazê-lo em setembro, durante a Assembleia Geral da ONU.
O ministro dos Negócios Estrangeiros português, Paulo Rangel, destacou que a posição assumida pela Autoridade Palestiniana — que, em junho, condenou os ataques do Hamas, apelou à libertação de reféns, comprometeu-se com eleições e com o desarmamento do grupo islamita — representa “um novo passo para a concretização da solução dos dois Estados”. Rangel afirmou que estas condições, aliadas a uma mudança de atitude de vários países árabes em relação a Israel, marcam “um ponto de viragem”.
O que pedem os países que apoiam o reconhecimento?
Na declaração conjunta, os 15 países apelam a um cessar-fogo imediato, à libertação de todos os reféns detidos pelo Hamas, ao acesso humanitário irrestrito a Gaza e ao respeito pelo direito internacional. Condenam o ataque terrorista de 7 de outubro de 2023, que causou cerca de 1.200 mortos em Israel, e manifestam “profunda preocupação” com o elevado número de vítimas civis em Gaza.
Reafirmam ainda o compromisso com uma solução de dois Estados, defendem a unificação de Gaza e Cisjordânia sob a autoridade da Autoridade Palestiniana e elogiam os compromissos desta última com reformas e com o princípio de um Estado desmilitarizado.














