Crise no Sahel: Al Qaeda prepara-se para controlar um país inteiro pela primeira vez

A situação no Mali agravou-se drasticamente nas últimas semanas, com as forças ligadas à Al Qaeda a aproximarem-se da capital, Bamako, num avanço que especialistas consideram poder conduzir à primeira tomada de um país inteiro por um grupo classificado como terrorista pelos Estados Unidos.

Pedro Gonçalves
Novembro 4, 2025
16:15

A situação no Mali agravou-se drasticamente nas últimas semanas, com as forças ligadas à Al Qaeda a aproximarem-se da capital, Bamako, num avanço que especialistas consideram poder conduzir à primeira tomada de um país inteiro por um grupo classificado como terrorista pelos Estados Unidos. O bloqueio imposto pelos jihadistas, que impede a entrada de combustível e mantimentos, está a asfixiar a cidade e a paralisar a capacidade de resposta do exército maliano, ameaçando mergulhar o país num colapso total.

De acordo com o Wall Street Journal, militantes do grupo Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), filiado à Al Qaeda e ativo no Sahel desde 2017, têm vindo a apostar numa estratégia de cerco prolongado em vez de um ataque direto. “Quanto mais o bloqueio durar, mais perto Bamako estará de colapsar”, afirmou Raphael Parens, investigador do Foreign Policy Research Institute, em Filadélfia.

As forças jihadistas, que receberam treino e apoio logístico da liderança central da Al Qaeda na região Afeganistão-Paquistão, controlam já grande parte do norte e centro do país. A sua estratégia passa por isolar Bamako, cortando as rotas de abastecimento essenciais. Esta semana, dezenas de camiões-cisterna foram emboscados enquanto transportavam combustível para a capital. Militantes armados, vestidos com calças rasgadas e turbantes, saíram da savana, incendiaram o primeiro veículo e capturaram os restantes, segundo imagens divulgadas pelos próprios insurgentes e confirmadas por fontes ocidentais.

As forças armadas estacionadas em Kati, a principal base da junta militar, não conseguiram intervir por falta de combustível — uma situação que se repete há semanas. “É um ciclo que se autoalimenta: para derrotar o JNIM são necessárias operações terrestres e apoio aéreo, mas ambos dependem de um fornecimento constante de combustível”, explicou Parens.

O impacto na população é devastador. O preço do litro de gasolina em Bamako quase triplicou, atingindo os 2000 francos CFA (cerca de 3,55 dólares). “Hoje não há nada nas bombas”, relatou o residente Ibrahim Cissé, que descreve longas filas e esperas de dias para conseguir abastecer. Em resposta à crise, o governo suspendeu as aulas em escolas e universidades por duas semanas e encerrou várias centrais elétricas.

O primeiro-ministro maliano, Abdoulaye Maïga, tentou adotar um tom desafiante, declarando na semana passada que “mesmo que tenhamos de procurar combustível a pé ou com uma colher, nós o faremos”. No entanto, o desespero é evidente numa capital cada vez mais isolada.

A crise no Mali insere-se num quadro mais amplo de expansão jihadista em África. Militantes da Al Qaeda e do Estado Islâmico conduzem insurgências em vastas regiões do Sahel — incluindo Níger e Burkina Faso — e ameaçam agora os países costeiros mais estáveis da África Ocidental, como o Benim, a Costa do Marfim, o Togo e o Gana.

O Mali, com 21 milhões de habitantes e uma área três vezes superior à da Califórnia, é considerado o elo mais fraco. Tal como o regime de Cabul antes da queda em 2021, Bamako enfrenta o risco de um colapso interno. O JNIM tem declarado abertamente que pretende seguir o exemplo dos talibãs e replicar o seu modelo de tomada de poder, inspirado também na conquista de Damasco por uma filial da Al Qaeda, referida num relatório das Nações Unidas em julho.

O movimento é liderado por Iyad ag Ghali, um ex-músico tuaregue que se radicalizou e impôs uma versão austera da lei islâmica nas regiões sob o seu controlo. Procurado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e contra a humanidade, Ag Ghali continua foragido enquanto as suas forças se aproximam de Bamako. Nenhum dos apoios internacionais — seja dos Estados Unidos, da União Europeia ou das Nações Unidas — conseguiu travar o avanço jihadista.

O exército maliano, temendo a crescente influência islamista, depôs o governo civil em 2020 e voltou a tomar o poder num segundo golpe de Estado em 2021. A junta militar expulsou as forças francesas e contratou mercenários do grupo russo Wagner, cuja presença apenas agravou a violência. De acordo com ativistas de direitos humanos, as operações conjuntas entre Wagner e o exército provocaram massacres de civis, levando muitos habitantes a procurar refúgio junto dos jihadistas.

Um dos sobreviventes desses ataques, o comerciante de gado Seydou Bah, descreveu o massacre de Moura, em março de 2022, onde mais de 500 pessoas foram mortas. Após o exército ter assassinado o seu irmão por denunciar as atrocidades, Bah fugiu para uma aldeia controlada pelo JNIM, onde os novos senhores impuseram tributos em gado e colheitas. “Quer sob o exército, quer sob o JNIM, não há liberdade”, afirmou.

Mais recentemente, Moscovo enviou novos contingentes militares sob controlo direto, mas as forças russas têm mostrado falta de experiência no terreno. As emboscadas dos jihadistas têm-lhes permitido capturar armas e reforçar o cerco à capital.

Na tentativa de reverter a crise, o regime maliano pediu mais ajuda à Rússia, tendo uma delegação russa prometido enviar até 200 mil toneladas de petróleo e alimentos. Os Estados Unidos, por seu lado, anunciaram a evacuação parcial da sua embaixada e recomendaram aos cidadãos americanos que abandonassem o país de imediato.

De acordo com fontes diplomáticas, o contratante de segurança norte-americano Erik Prince mantém contactos com a junta para oferecer apoio militar. Ainda assim, analistas europeus acreditam que os insurgentes dificilmente conseguirão controlar grandes cidades, embora admitam que futuras negociações com os jihadistas sejam uma possibilidade, sobretudo se o regime militar cair.

Ao mesmo tempo, o JNIM fortalece a sua posição no interior do país, financiando-se através de impostos sobre o tráfico de ouro e droga entre a América Latina e a Europa. Muitos malienses que podem estão a fugir: alguns conseguiram voar para o Senegal ou a Costa do Marfim, mas os bloqueios impostos pelos jihadistas impedem as saídas por estrada. Segundo as Nações Unidas, já mais de 334 mil pessoas procuraram refúgio nos países vizinhos.

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