Será Que o Consumidor Idoso Não é um Cliente?

Opinião de Sandra Miranda de Oliveira, Professora de Gestão Estratégica e Marketing. ISEG – Lisbon School of Economics & Management. Universidade de Lisboa.

Executive Digest
Outubro 1, 2025
11:36

Por Sandra Miranda de Oliveira, Professora de Gestão Estratégica e Marketing. ISEG – Lisbon School of Economics & Management. Universidade de Lisboa.

Cuidar é um ato profundamente humano. Atualmente, o aumento da longevidade, a mudança na estrutura familiar e social (e.g., fim da convivência de várias gerações numa mesma casa e o fim da existência de famílias numerosas), a participação das mulheres no mercado de trabalho e o estilo de vida urbano (com mudanças no ritmo e no espaço, como horários mais imprevisíveis e pressionados, habitações mais pequenas e menos adaptadas) levam à necessidade de recorrer a cuidados institucionais, como lares de idosos e casas de repouso. Assim, áreas anteriormente fora do âmbito da lógica de mercado, passaram a estar sujeitas a lógicas de oferta e procura, volume e custo.

Para o idoso, a transição de sua casa para uma instituição de cuidados representa, na maioria das vezes, o abandono de uma vida passada de relacionamentos (momentos familiares, como almoços com filhos e netos em casa, que deixam de ocorrer com a mesma frequência, ou a convivência com vizinhos e amigos), rotinas (por exemplo, o hábito de se levantar e preparar o pequeno-almoço na sua própria cozinha) e posses (como objetos pessoais que marcam a sua casa e a sua vida). A transição para esta nova realidade provoca crises de identidade (“Quem sou eu!”), frequentemente associadas a sentimentos de inutilidade, dependência, isolamento e abandono1.

Para as instituições de cuidados de saúde o desafio também é complexo. Os lares de idosos operam entre forças que nem sempre se conciliam. Por um lado, enfrentam a pressão da lógica de mercado, que exige eficiência, controlo de custos e rentabilidade. Isso traduz-se, muitas vezes, em equipas reduzidas, profissionais sobrecarregados e níveis preocupantes de exaustão física e emocional. Por outro lado, essas mesmas instituições são chamadas a cumprir padrões elevados de qualidade no cuidado, observando normas e regulamentos legais, ao mesmo tempo que procuram promover relações humanas significativas entre os seus profissionais de saúde e os residentes. Neste cruzamento de lógicas — económica, profissional e humana — surgem tensões que afetam diretamente quem mais precisa de estabilidade: o idoso.

A tentativa do idoso de manter a sua identidade é frequentemente prejudicada pelas dinâmicas de poder e pelas lógicas inerentes às instituições de cuidados de saúde1. A escassez de apoio individualizado e a rigidez dos protocolos de segurança limitam frequentemente a liberdade de movimentação do idoso, que se vê confinado à sua “enfermaria” imediata; a regulamentação da quantidade de pertences pessoais, como móveis, que podem ser trazidos, muitas vezes com o objetivo de garantir uma limpeza eficiente e fornecer espaço suficiente para as rotinas de cuidados profissionais; ou a impossibilidade de personalizar o seu espaço de habitação, como pintar paredes ou pendurar quadros, restringem a liberdade de autoexpressão. Também a dificuldade em manter antigos passatempos e atividades de lazer, sujeitando-se aos limites físicos e às atividades propostas pela instituição, devido a considerações de custo e capacidade de atendimento, são apenas alguns exemplos que minam o equilíbrio difícil e, na maioria das vezes, doloroso do idoso entre preservar a identidade anterior e adaptar-se a uma nova identidade.

As ações dos próprios familiares, ainda que bem-intencionadas, são também, muitas vezes, um desafio para o idoso. Os familiares esquecem-se, por vezes, de que nos seus esforços para se adaptarem a uma nova identidade em construção, os idosos desenvolvem novos gostos, novas preferências e novos hábitos que os ajudam a reconstruir conexões pessoais (muitas vezes muito diferentes dos seus relacionamentos anteriores), a reavaliar as suas posses, a reconsiderar atividades e a construir novos espaços. Estes processos são, muitas vezes, incompreendidos e desestabilizados pelos próprios familiares que procuram refletir nos idosos padrões de comportamento passados, como a roupa que vestia ou hábitos alimentares anteriores1.

Urge que os governos e as autoridades reguladoras repensem como promover um quadro normativo e regulamentar que ajude as instituições a proteger o idoso sem ferir a sua autonomia e independência. Em simultâneo, as entidades públicas e privadas devem repensar as suas ofertas de forma a assistirem sem controlarem. Também os familiares dos idosos devem compreender que o aumento da dependência na velhice não deve ser retratado como um aumento da incompetência do idoso, nem justificar intromissões nas suas escolhas pessoais e na sua privacidade.

Conhecer o consumidor de cuidados de saúde não é apenas compreender as suas necessidades clínicas, mas perceber quem ele é, o que valoriza e como quer viver o resto da sua vida.

1 Julia Rötzmeier-Keuper, Nancy V Wünderlich, Who Am I Here? Care Consumers’ Identity Processes and Family Caregiver Interventions in the Elderscape, Journal of Consumer Research, Volume 52, Issue 2, August 2025, Pages 372–392, https://doi.org/10.1093/jcr/ucae045

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