Uma publicação recente da Polícia Judiciária (PJ) nas redes sociais gerou forte controvérsia e acusações de “culpabilização das vítimas” de violência sexual. A publicação, que visava alertar para os perigos associados à vida noturna e ao consumo excessivo de álcool, foi amplamente criticado por internautas e levou o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) a apresentar uma queixa formal à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG).
A publicação em causa, divulgada a 30 de outubro, fazia referência a um caso recente de violação de uma jovem de 17 anos, ocorrido em Lisboa. A PJ descreveu o episódio como tendo acontecido “na sequência de uma saída noturna, na qual a vítima acabou em estado de inconsciência após consumo excessivo de álcool”, acrescentando a pergunta: “Quando se sai à noite nunca se pensa neste desfecho, pois não?”
A mensagem prosseguia afirmando que “em contexto de diversão noturna, e não só, o álcool vulnerabiliza, reduzindo a capacidade de vigília e reação a episódios de violência e abuso sexual. Foi o que aconteceu. A incapacidade de reação, nestas condições, ditou mais uma vítima.”
Estas palavras foram interpretadas por muitos utilizadores como uma tentativa de desresponsabilizar o agressor e transferir a culpa para a vítima. Nas redes sociais, os comentários multiplicaram-se, com críticas severas à formulação da mensagem. “A vítima é que tem culpa?”, questionou uma internauta, ecoando o sentimento generalizado.
Outro utilizador escreveu: “Aqui colocou-se o ónus do lado errado. A vítima tinha direito a ingerir álcool, e aliás, não é ilegal ficar inconsciente por isso. No entanto, é crime violar alguém. Que tal mudarmos a narrativa?”
Muitos dos comentários destacavam a necessidade de as instituições públicas comunicarem de forma mais responsável. “Podem não culpabilizar a ingestão de álcool da vítima e sim o ato horrível que o homem cometeu?”, escreveu uma utilizadora. Outro comentário, entre os mais apreciados, afirmava: “Não foi a incapacidade de reação que originou a violação, foi a existência de um predador sexual. É fundamental que uma Instituição como a vossa promova o discurso correto e seja objetiva onde realmente está o ónus do crime: no violador, e não na vítima.”
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A PJ acabou por desativar a secção de comentários na publicação, face à onda de críticas.
Queixa do Movimento Democrático de Mulheres à CIG
O Movimento Democrático de Mulheres (MDM) confirmou ao Jornal de Notícias ter apresentado, no dia 3 de novembro, uma queixa formal à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. O grupo considera que o post da PJ “estigmatiza, promove uma inaceitável responsabilização das mulheres e desculpabiliza os agressores por práticas criminosas”.
Na queixa, o MDM afirma que “o texto e a imagem escolhidos deslocam o foco do crime para uma imagem de mulher, insinuando um nexo causal entre ser mulher, sair à noite, consumir álcool e ‘maus desfechos’. Esta narrativa não informa nem previne: estigmatiza de forma inaceitável”.
A organização exige à PJ uma “comunicação institucional responsável” e que a instituição “corrija a sua estratégia de comunicação, contribuindo para a prevenção efetiva da violência: dirigir-se a quem comete crimes contra as mulheres — não a quem a sofre —, afirmar limites e consequências, e abandonar qualquer desculpabilização sobre os atos de violência cometidos contra mulheres”.
Segundo o MDM, o tipo de discurso utilizado pela PJ “corrói a confiança nas instituições, não contribui para a apresentação de denúncias e perpetua a velha pedagogia do medo: ‘não saias, não bebas, não andes sozinha’”. O movimento sublinha ainda que “as mulheres têm direito ao lazer e ao espaço público, de dia e de noite, sem culpa nem vigilância” e defende que “a liberdade das mulheres não é negociável”.
O comunicado do MDM acrescenta que “a prevenção da violência não se faz com sermões às vítimas, reais ou potenciais, nem com mensagens que insinuam que ‘se puseram a jeito’; faz-se nomeando a responsabilidade de quem agride, comunicando de forma processualmente neutra e dirigindo a mensagem a quem deve ser interpelado: sem consentimento explícito, é crime; se a outra pessoa não pode ou não quer, para; quem presencia, intervém em segurança e pede ajuda”.
Caso em Lisboa motivou a publicação
O caso referido pela PJ ocorreu a 29 de outubro, em Lisboa, e envolveu uma jovem de 17 anos que foi abusada sexualmente por um homem entretanto detido pela Polícia Judiciária. Na mensagem original, a PJ recomendava “moderar o consumo de álcool nas saídas à noite”, “não aceitar bebidas de desconhecidos” e “recusar boleia de estranhos”.
Contudo, a formulação e o enquadramento escolhidos acabaram por provocar o efeito inverso ao pretendido, com críticas de várias organizações e cidadãos que consideraram que a comunicação institucional da PJ falhou ao colocar o foco sobre a vítima, e não sobre o agressor.
O MDM conclui a sua denúncia afirmando que “quando a PJ apresenta o álcool como elemento determinante, esvazia o princípio basilar: o abuso sexual resulta da decisão de quem agride — e não o contrário. O álcool não transforma a vítima em corresponsável”.
A Polícia Judiciária não reagiu publicamente à queixa até ao momento.












