Por Guilherme Ramos Pereira, Head of Strategic Development na 99x Portugal
Nos últimos tempos, tenho pensado muito sobre a forma como a Inteligência Artificial (IA) deixou de ser uma promessa distante para se tornar uma realidade que mexe com tudo: modelos de negócio, processos internos e até a maneira como trabalhamos todos os dias. No meio desta transformação acelerada, há algo que me parece cada vez mais evidente: a Garantia da Qualidade (QA) já não é apenas um “passo técnico” no ciclo de desenvolvimento de software. Ganhou uma dimensão estratégica, quase transversal, porque é o que assegura que cada decisão suportada por IA seja realmente confiável e consistente.
É certo que as equipas de QA estão presentes há muito tempo desde a fase inicial dos requisitos. Metodologias como a Behaviour Driven Development são disso exemplo. Mas a chegada em massa da IA mudou o jogo. Já não basta validar software como ‘antigamente’: é preciso acompanhar, em paralelo, a lógica de negócio, os dados que alimentam os modelos e os processos que sustentam cada decisão automatizada. Quando a IA acelera como nunca a geração de código, uma abordagem reativa deixa de ser só insuficiente, torna-se perigosa.
Um estudo do MIT Technology Review Insights mostra que 95% das empresas já integram tecnologias de IA nos seus fluxos de trabalho. Usam-nas para automatizar tarefas, analisar dados, criar soluções mais rápido. Mas a maioria ainda está em piloto. E aqui mora o risco: a proliferação de MVPs criados a partir de prompts engenhosos e de um “vibe coding” acelerado facilita a experimentação, mas nem sempre garante segurança ou alinhamento com a estratégia. Se os requisitos são incompletos ou mal definidos, a IA preenche lacunas com pressupostos. E sabemos bem onde isso pode levar: bugs, erros de lógica e produtos desalinhados com os objetivos reais.
Numa conversa com o João Cardoso, colega de longa data e especialista em transformação digital, chegámos a uma conclusão simples, mas incontornável: o hype da velocidade não pode esmagar os processos mais básicos de qualidade. A pressa pode ser inimiga da viabilidade. E talvez por isso seja urgente assumir um novo “mandato” para a Qualidade.
Hoje, QA não olha apenas para código. Olha também para requisitos, casos fora do comum, integridade dos dados e consistência quando diferentes módulos são integrados. É aqui que se previne o efeito dominó: pequenas falhas no início que se transformam em grandes problemas no fim. E por isso a solução vai muito além de testes inteligentes. Obriga a redesenhar fluxos de trabalho, a validar cada etapa desde a recolha de dados até à entrada do modelo em produção.
A IA traz velocidade, escala e cobertura. Fantástico, sem dúvida. Mas os humanos trazem algo que nenhuma máquina substitui: contexto, criatividade e visão estratégica. O equilíbrio só se encontra com processos claros, prompts bem definidos e verificações contínuas. É este equilíbrio que protege a cadeia de valor e cria confiança nos resultados.
Os dados confirmam: segundo o MIT, 45% dos executivos veem governança, segurança e privacidade como barreiras, e metade considera a má qualidade dos dados o maior entrave. Tanto que 98% das empresas preferem abdicar de ser pioneiras na adoção de IA se isso significar uma implementação mais segura e fiável.
No fundo, a pergunta não é “o que conseguimos fazer com IA?”, mas sim “o que conseguimos fazer bem, com confiança e impacto real?”. E a resposta passa inevitavelmente por este novo mandato para a Qualidade. Não como uma fase isolada no fim da linha, mas como um princípio orientador de toda a jornada. Unindo IA, dados e pessoas para construir decisões sólidas, consistentes e transformadoras.





