Num acampamento improvisado no meio da floresta amazónica, sobre um chão coberto por ramos, lonas e mosquitos, um oficial da Legião Estrangeira francesa escreve o relatório diário enquanto o gendarme David aponta locais suspeitos num mapa pousado sobre uma mesa repleta de espingardas. Um gerador vibra no fundo do cenário, rodeado pelo labirinto verde das centenas de ilhotas do reservatório de Petit-Saut — um mosaico aquático com três vezes a dimensão de Paris. Mas Paris está a 7.000 quilómetros. Estamos na Guiana Francesa, departamento ultramarino da França e o mais remoto posto avançado da União Europeia.
Com uma área equivalente à de Portugal e apenas 300 mil habitantes, este território vota nas presidenciais francesas, envia deputados para a Assembleia Nacional e usa o euro como divisa. Na prática, é administrado como qualquer região metropolitana. Na realidade, é a porta amazónica da Europa: tem a mais longa fronteira terrestre francesa — com o Brasil — e acolhe o único centro espacial europeu.
Aqui convergem contradições profundas. Satélites lançados da costa atlântica monitorizam o aquecimento global e a destruição das florestas, mas, debaixo da mesma copa amazónica, milhares de garimpeiros continuam a contaminar ecossistemas e habitantes com mercúrio. E, apesar de duas décadas de operações militares e quase mil milhões de euros investidos, a França ainda não conseguiu travar esta atividade.
A fronteira invisível que trava a Europa
A grande barreira chama-se Maroni, o rio que separa a Guiana Francesa do Suriname e que, na prática, limita a ação francesa. De um lado, legislação ambiental da UE; do outro, uma cadeia de abastecimento ilegal que funciona à vista de todos, com mercúrio, equipamentos, comércio e compra de ouro sem qualquer fiscalização. A ideia de “Fortaleza Europa” dissolve-se aqui, onde a soberania se dilui como lama na corrente.
David mostra ao The Guardian, uma pequena garrafa de plástico selada com uma tampa amarela. “É isto que procuramos.” Dentro, mercúrio — mais de treze vezes mais denso do que a água. Proibido desde 2006 pelos danos ambientais e neurológicos, continua a ser a ferramenta essencial das redes de garimpo clandestinas. Desencadeou o envio anual de 200 gendarmes e 600 a 700 militares para a Operação Harpie, relançada por Nicolas Sarkozy em 2008. Custará cerca de 55 milhões de euros este ano.
A força no terreno vive num ciclo vicioso: “procurar, perseguir, apreender, repetir”. Do outro lado, grupos pequenos e por vezes armados de garimpeiros — quase sempre brasileiros — movem-se rapidamente ao longo da selva densa.
No coração da operação Harpie
Para chegar ao posto avançado AP-51, instalado numa ilha de Petit-Saut, é preciso conduzir duas horas desde Caiena e depois navegar mais de uma hora numa piroga. Ali, dois gendarmes e uma dúzia de legionários armam as suas redes todas as noites enquanto planeiam emboscadas para o dia seguinte. O comandante do acampamento apresenta-se como “Chief Nuri”. Quando lhe recordam que a Legião prefere não ver as caras dos seus homens fotografadas, reage sem hesitar: “Não dei direitos de imagem à Legião. Tire-me a fotografia — mas não agora. Não quando estou de Crocs.”
A disciplina rígida do tenente francês contrasta com o ar descontraído dos legionários: botas impecáveis, nós de rede perfeitos, e a exigência firme de que “todos tomem banho no lago”.
Durante a noite, o acampamento treme com o rugido grave dos bugios. Ao amanhecer, a humidade é tão intensa que parece infiltrar-se na pele. Os legionários carregam água e ajustam coletes salva-vidas que serão abandonados ao fim de poucas horas por causa do calor sufocante.
A meio da perseguição a uma piroga suspeita, o tenente entrega um colete à prova de bala e avisa o jornalista: “Não se afaste da fila.” Nos últimos anos, vários militares morreram na operação, incluindo dois numa emboscada em 2012 e outro em rápidos este ano. A lembrança das mortes do jornalista Dom Phillips e do ativista Bruno Pereira, em 2022, paira no ar como aviso.
No mato não há trilhos. Avança-se a golpes de machete, tropeçando no solo ensopado. Após horas de perseguição a grupos que desaparecem na selva, regressa-se ao acampamento exausto, desidratado e derrotado. É assim quase todos os dias.
A Legião Estrangeira do século XXI
Entre conversas esparsas, emergem fragmentos de histórias: um nepalês que viu um documentário e decidiu alistar-se; outro que encontrou na Legião mais flexibilidade do que nos Gurkhas; um brasileiro que excedera o limite de tempo nas Forças Armadas do seu país; um maliano orgulhoso das malaguetas que plantou no acampamento. A Legião mantém a reputação de dar segundas oportunidades — e exigir anonimato em troca.
O regresso ao AP-51 coincide com o início da noite. Depois de seis litros de água e horas a caminhar sob calor extremo, o corpo vacila. À beira do colapso, um aviso seco do tenente impede um desastre na embarcação: “Não vomite na piroga.”
Ouro, mercúrio e séculos de desigualdade
A Guiana Francesa carrega cinco séculos de história complexa: colonização europeia desde 1503, escravatura, deportações políticas, e o infame presídio da Ilha do Diabo, onde Alfred Dreyfus foi encarcerado. A imagem do território como ilha ainda persiste, apesar de ser errada.
O ouro moldou o território desde 1858, quando começou a primeira corrida ao metal. A técnica mudou pouco desde então: dragar sedimentos, misturar água e mercúrio, que se liga ao ouro, e queimar depois a amálgama. O vapor entra no ar; a lama envenenada infiltra-se nos rios e na cadeia alimentar.
Hoje, entre 6.000 e 7.000 garimpeiros operam em cerca de 600 locais diferentes. Harpie conseguiu “estabilizar” o fenómeno, dizem os comandantes, apesar de o preço do ouro ter triplicado desde 2018. Mas relatórios parlamentares continuam a criticar “meios insuficientes” e resultados limitados.
A pergunta pesa no ar: o que aconteceria se a operação terminasse? Quanto seria destruído?
As fronteiras internas da Guiana Francesa
Apesar de a população rejeitar autonomia em 2010 e valorizar a ligação à UE, a desigualdade é gritante. O rendimento médio é metade do registado na França continental. A costa concentra 90% da população. No interior, ao longo do Maroni, vivem sobretudo comunidades Bushinengue — descendentes de escravos fugidos. Em muitas zonas, o Estado francês é quase invisível.
O voo para Maripasoula revela o que o solo esconde: manchas ferruginosas na copa verde, cicatrizes abertas pelo garimpo. A partir daí, a viagem só continua de piroga até Taluen, onde vive a comunidade Wayana.
O chefe Aïmawale Opoya descreve o impacto do garimpo sem hesitar: “Os garimpeiros poluíram tudo: os rios, a floresta, a caça, os peixes.” O mercúrio dá ao rio uma cor leitosa após as chuvas. As crianças já não podem nadar. O peixe, base alimentar tradicional, está contaminado. A água potável está mais longe do que nunca.
As lojas chinesas no lado surinamês — cerca de 120 ao longo do rio — vendem equipamento, mercúrio “em salas de trás”, alimentos processados e bebidas, enquanto compram o ouro extraído. Muitas passaram a funcionar em regime de “meação”, ficando com parte da produção.
Perante o envenenamento generalizado, os Wayana recorrem cada vez mais a alimentos industrializados, com consequências visíveis: diabetes, hipertensão e “muitos outros problemas de saúde”, explica a enfermeira Lisa Michard.
Em 2024, Linia Opoya, esposa de Aïmawale, processou o Estado francês por falhar na obrigação legal de proteger cidadãos e ambiente. As queixas incluem dificuldades cognitivas, perda de memória, problemas de concentração e de visão, e perda de força.
Enquanto isso, escolas francesas no território continental retiram o atum das cantinas por razões de segurança. Na Amazónia europeia, há recomendações oficiais para que os habitantes consumam peixe apenas uma vez por mês.
Num tukusipan tradicional, o chefe Wayana Patrick Touenké resume o desespero da comunidade: “Falamos da mineração há anos e nada muda.” A última vez que enfrentaram os garimpeiros diretamente foi em 2009, com barricadas no rio. Quase duas décadas depois, a situação só se agravou.
A operação Harpie continua, mas a destruição também. A fronteira da Europa na Amazónia permanece indefesa, e a selva — uma das mais biodiversas do planeta — paga o preço.













